quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O ser e o dever-ser na ética

     Bom dia. Após algum tempo parado, vem mais uma postagem. Não creio que retomarei as postagem na mesma frequência que antes, mas não abandonei o blog.

     Pois bem, existe no direito uma afirmação bem conhecida em que se afirma que do "ser" não se pode extrair o "dever-ser". A afirmação diz que um conhecimento do "ser" das coisas, de como as coisas são, de como os seres humanos se comportam socialmente, não se pode extrair o "dever-ser", regras de como o ser humano deve se comportar. O fato de seres humanos se sentirem felizes ao fazerem coisas não implica nessas coisas serem boas. O fato de seres humanos matarem ou não gostarem que se mate não pode permitir que se conclua que o homicídio deva ser proibido ou permitido.
     Essa corrente, muito empregada por positivistas, parte de uma lógica que tem considera muito sólido o método científico (aqui entendido especialmente o aspecto de observar fatos). O método científico não pode ser utilizado, segundo os positivistas, para se definir o direito. Entretanto, concluem que o método científico pode ser empregado para estudar o direito. Assim como a química estuda as substâncias químicas e suas reações, a ciência do direito estuda as normas (envolvendo suas diversas fontes, como leis, costumes, decretos etc.). O direito seria um fato que não decorre deterministicamente da natureza, mas sim da vontade humana, e como fato poderia ser estudada não de forma a se buscar uma verdade de como o comportamento deveria ser, mas como aquele ordenamento jurídico permite ou obriga comportamentos. O positivismo também prega um independência entre ética e direito, em que o direito decorre da vontade humana, e a ética não. Com esse breve parágrafo espero não ter dito nenhuma absurdidade.

     Mas observemos um pouco mais atentamente a afirmação de que o dever ser (sentido de obrigações, deveres) não decorre do ser. Há de se concordar que bem e mal não são partículas nem energias físicas. Ocorre que o "ser" das coisas não pode ser reduzido à matéria. Aristóteles disse que se pode explicar as coisas por meio de quatro causas: material (do que as coisas são feitas ou a partir do que as coisas são feitas), formal (o que faz da coisa aquilo que é), eficiente (quem/o que fez a coisa) e final (para que a coisa foi feita). A título de exemplo, uma faca tem por causa material o metal (pode ter madeira e outras coisas também, mas imaginemos uma faca sólida de metal), por causa formal a organização do metal de forma fina e alongada, por causa eficiente o ferreiro (a causa eficiente pode ter diversos graus, pode ser a arte de dobrar o metal, pode ser o líder que deu ordem a um ferreiro de uma corporação para fazer o metal etc.), e por causa final a habilidade de cortar (a causa final pode ter também vários graus, pode ser cortar determinado objeto, por exemplo, ou se defender).
     Finalidade pressupõe sentido, mas não pressupõe um agente racional. Ao se explicar que a chuva cai para regar as plantas, se indica finalidade, mas não se indica que alguém ou algo fez a chuva para regar as plantas, apenas indica a destinação da chuva, sendo que pode ou não cumprir essa finalidade (assim como a faca pode ou não ser empregada para a finalidade dos agentes envolvidos em sua causa eficiente).
     A explicação científica, partindo da observação, se direciona para a explicação de uma realidade material, focando especialmente na causa material. Perguntam mais a partir do que uma reação química é feita (causa material), por exemplo, do que o que faz do fogo o fogo (causa formal), quem deu origem à reação (causa eficiente) e abstrai a finalidade da reação (para o cientista independe de porque alguém quis fazer a reação; a finalidade é apenas a produção de uma nova substância). Com isso, a ciência se especifica para responder algumas questões, mas deve estar ciente de que é incapaz de responder todas as perguntas.

     Pois bem, penso que a ética tem relação com a causa final do ser humano e de coisas relacionadas com o ser humano. A ética seria, analogicamente, como um manual de instruções para o ser humano se realizar enquanto ser humano, assim como um manual de automóvel tem as instruções para o automóvel ser bem empregado enquanto automóvel. A ética não obriga fisicamente a se fazer algo, mas obriga moralmente. Assim como o manual não pode forçar alguém a utilizar bem o carro, mas obriga a pessoa em sua consciência a usar o carro do modo certo. Uma investigação ética não pode, portanto, deixar de lado a razão, pois a razão é o instrumento que permite identificar uma relação de finalidade (relação que só o ser humano pode identificar pela sua habilidade intelectiva). De fato, a razão não é empregada de modo a se estudar fatos (método científico), mas sim investigar a realidade humana de modo a abarcar sua totalidade (focando na causa formal).
      Interessante notar aqui a relação entre causa formal e causa final. A faca tem por causa formal a organização da matéria de modo a ter uma instrumento cortante, e a habilidade de cortar é sua causa final. A habilidade de cortar está relacionada tanto na causa formal quanto final. Daí a investigação ética, ao se focar na causa final, necessariamente deve estudar a causa formal do ser humano; para saber como o ser humano se realiza enquanto ser humano, é preciso saber o que faz do ser humano um ser humano.
     Aqui vem a lógica jusnaturalista (contrária e anterior à positivista) - ao se conhecer, mesmo que parcialmente, regras e princípios que permitem que o ser humano se realize enquanto ser humano (realização de sua causa final), as organizações humanas (inclusive o direito - lei humana) devem se subordinar a essas regras e princípios que decorrem da natureza humana (causa formal). Assim, há uma hierarquia aqui. As leis morais mais fundamentais são hierarquicamente superiores à leis humanas, e a lei humana é inválida e ilegítima se não obedecê-las. Ao contrário do que prega o positivismo, não há uma lógica de se extrair da causa material leis, mas sim de se extrair da causa formal tendo em vista a causa final o modo que o ser humano deve se comportar.
     A obrigatoriedade moral não é simplesmente dizer que "é próprio do ser humano ser livre, logo o ser humano deve ser livre e é imoral o que o aprisiona", mas sim que "é próprio do ser humano ser livre, e ser livre é a única forma de se realizar enquanto ser humano, assim é imoral o que o aprisiona" (obviamente, não se defende aqui a liberdade absoluta, mas se dá um exemplo concreto de como funciona a ética).
     Assim, a ética e seus deveres não devem ser vistos como um jugo sobre o ser humano, mas como o caminho para se realizar. Correntes filosóficas existem que negam que haja uma causa final no ser humano ou que é possível traçar tal caminho na ética, mas isso é assunto para outro dia.


Bom dia