Uma professora de direito pergunta à turma: Quem acha que o sistema de saúde deve ser somente privado?
Um único aluno timidamente levanta à mão.
A situação descrita acima revela não só a situação nas salas de direito, mas na própria sociedade. Talvez haja mais alunos que acreditem no sistema privado de saúde, mas que não levantaram a mão por outros motivos. O que importa é que só uma pessoa se manifestou.
Bem, esse aluno fui eu. Vamos falar dessa questão?
Vamos, primeiro, evitar a falácia da falsa dicotomia. Há diversas tonalidades de cinza entre o branco e o preto. A solução não é somente ou só o sistema público ou só o sistema privado.
Soluções alternativas: é possível a coexistência dos dois sistemas, é possível certos setores serem só públicos e outros serem só privados, também é possível um sistema de vouchers (ideia interessante).
O que defendo é que o governo cuide apenas do sistema de prevenção de doenças, como o carrinho que espirra veneno para matar o mosquito da dengue, a distribuição de vacinas etc. O setor privado deveria cuidar do atendimento médico hospitalar. Ah, o IML, que analisa os corpos das vítimas, também pode continuar público.
Ou seja, ao defender que o setor privado cuide da saúde, defendo somente a parte do atendimento.
Isso não é algo imediato, exige um processo de transição. Também é minha visão de médio prazo. Se ela se concretizar, poderei pensar em mais privatizações nesse setor a longo prazo. Não defendo por enquanto a privatização de tudo, acho que faltam dados sobre como deve ser a implantação e sua viabilidade.
Obs.: Parem com a ideia de atribuir conotação negativa à palavra "privatização". Aconselho o livro "Privatize Já", do Rodrigo Constantino (ou ver os seus vídeos no youtube a respeito do tema).
Apresentarei os seguintes pontos:
1 - O sistema público é ineficiente.
2 - O sistema público não satisfaz necessariamente as necessidades mais importantes.
3 - O sistema público distorce os preços
4 - Como deve ser a implantação.
5 - Sistema público de saúde não é incompatível com o uso de drogas.
1 - O sistema público é ineficiente.
Para algo é lento, é em relação a outra coisa, que é rápida. Se o sistema público é ineficiente, deve ser ineficiente em relação a outro sistema alternativo. Este sistema é o sistema privado. Ao criticarmos a lentidão dos hospitais públicos, temos como ponto de referência o mesmo atendimento no setor privado.
Vamos aos exemplos práticos.
i) Se você falar que um hospital tem algo como "padrão SUS de qualidade" ou é "o símbolo do sistema público de saúde", provavelmente os ouvintes evitarão tal hospital.
ii) Consultórios privados tem menos filas, atendimento melhor e ambientes mais confortáveis (por confortáveis, inclua a aparência de limpeza).
Agora, vamos a alguns motivos.
a) Não há motivação salarial adequada. O estímulo para o médico atender bem no sistema público é menor do que no sistema privado. A "estabilidade" no sistema público possibilita que o médico cometa mais erros e atenda com menos eficiência.
Vamos supor que o salário seja constante para o médico de sistema público. Então não importa quantos pacientes ele atenda, nem tanto a qualidade e nem o seu bom humor ao atender. Ele não tem estímulos para melhorar (exceto o amor à profissão. Alguns atendem bem pelo simples amor à profissão. Mas o atendimento é teoricamente melhor quando o amor se junta ao salário mais alto).
Então, para se ter estímulos salariais, se resolve pagar o médico conforme o número de pacientes atendidos. O médico irá buscar quantidade e não qualidade.
Então também se resolve avaliar a qualidade do atendimento. Mas como se avalia a qualidade? Com um questionário na saída do hospital? Mas o questionário só avalia logo após o atendimento, e não dias, semanas depois. (o cliente pode sair satisfeito - pelo menos, até o indivíduo descobrir que o médico esqueceu um instrumento dentro de seu corpo durante a cirurgia).
Os questionários são boas ideias, mas não conseguem colher todos os dados. Os pacientes atendidos conversam com os amigos, fazendo críticas duras, elogios sinceros. A indicação dos amigos é mais verdadeira e abrangente do que um questionário. Essa indicação é um dos fatores que determinam o salário do médico privado, se for uma boa indicação, ele tem mais clientes e ganha mais.
No sistema privado, a concorrência obriga os médicos a buscarem todas as características que são avaliadas pelo cliente. Se o médico não for bom, então perde clientes para outro melhor. A solução é diminuir os preços ou melhorar o atendimento. O risco de perder clientes se o atendimento for ruim e a possibilidade de ganhar mais dinheiro caso o atendimento seja bom são incentivos para melhorar a qualidade e a quantidade (sempre em equilíbrio).
b) Questão da verba.
O investimento que os hospitais públicos recebem depende do gerenciamento do governo. Sem investimento, não é possível melhorar a higiene, comprar equipamentos novos etc.
Vamos trabalhar com duas hipóteses: O governo envia verbas aos melhores hospitais e o governo envia verbas aos piores. Não vou trabalhar com as hipóteses de que seja completamente aleatória a distribuição e nem a que seja conforme a relação política entre o hospital e o governo.
Se o governo envia verba aos piores hospitais, os melhores não terão razão de serem bons. Simplesmente irão atender pior para receber mais verbas.
Se o governo envia verba aos melhores hospitais, os piores tentariam melhorar o atendimento para receber mais verbas. Porém, o incentivo não é o mesmo do que no sistema privado. Mesmo os hospitais ruins têm "estabilidade", não importa quão ruim você atenda, você tem "estabilidade". Isso leva a medida a possivelmente apresentar efeitos inversos em alguns lugares. Alguns podem preferir trabalhar menos e receber menos - não são desempregados devido a tal "estabilidade".
No sistema privado, os melhores médicos têm os melhores equipamentos. Os melhores médicos recebem mais dinheiro, investem o dinheiro em equipamentos melhores. Isso é um círculo virtuoso, pois melhores equipamentos possibilitam atender melhor. Os piores médicos devem se esforçar para atenderem razoavelmente bem. Se não fizerem, irão à falência. Como o médico é uma profissão valorizada, quase 100% dos médicos preferirão continuar na profissão e, portanto, melhorar o atendimento. Não existe a tal "estabilidade", se o médico não quiser trabalhar, terá um salário proporcional ao seu trabalho, sempre com o risco de perder clientes.
2 - O sistema público não satisfaz necessariamente as necessidades mais importantes.
O que é mais importante: Todos terem um sistema de atendimento em caso de determinadas doenças ou todos receberem determinada quantidade de comida por mês?
A resposta é "depende". Cada agente homem possui prioridades. Para uns, é mais importante comer meio pão a mais por dia do que ser atendido em caso de um câncer hipotético.
Impor o seu desejo a todos é desvalorizar a capacidade do outro de escolher o que é melhor para si e a liberdade do outro de escolher errado. É exatamente isso que acontece quando o governo coleta tributos (dinheiro esse que poderia ser usado pelas pessoas para as necessidades que elas julgam mais importantes) para criar o sistema público de saúde. Ele pressupõe que todos os contribuintes preferem o sistema a comida, por exemplo.
Ah, podem dizer que os ricos pagam para os pobres o sistema público. Não exatamente. São todos que pagam. E mesmo que fosse os mais ricos, o pobre pode preferir mais comida, ou roupas, ou cigarro, ou outra coisa em vez do sistema de saúde. E ainda, se os ricos pagam para os pobres, fazem isso por serem obrigados, e não por sua liberalidade. Não há virtude em se fazer o bem por coação.
3 - O sistema público distorce os preços.
Aqui, apresente uma tese minha. Não sei se alguém já falou isso, mas o fato é difícil comentarem sobre isso.
O sistema público aumenta os custos dos clientes por ter preços desproporcionais.
Para isso, não é preciso do pressuposto de que o sistema privado é melhor. O pressuposto é que o sistema público é muito grande.
O sistema público é muito grande, a maioria dos médicos está nele. Alguns atendem melhor do que outros. Os melhores acham que o sistema público não remunera suas habilidades o suficiente. Estes insatisfeitos irão abrir suas próprias clínicas. Por terem melhores habilidades, conseguirão clientes dispostos a pagarem.
Suponha que os médicos do sistema público recebam bastante, suponhamos que seja 10 reais.
Os médicos do sistema privado não irão quer o salário de 10 reais. Suas habilidades merecem mais, vamos supor que seja 10 reais e 50 centavos.
A questão é que há também médicos piores no sistema público. O trabalho deles mereceria apenas 6 reais, e não os 10 reais que ganham. Eles não irão ao sistema privado por não serem habilidosos o bastante.
A sociedade, portanto paga o médico ineficiente acima do que seu trabalho vale. E os médicos cujo trabalho é melhor não compensam esse médico ineficiente: vão para o setor privado.
Sem o sistema público, todos os médicos tentariam atender o máximo que conseguirem na melhor qualidade possível. Alguns atenderão mais pessoas por um preço menor, outros atenderão menos pessoas por um preço maior.
Ao privatizar o sistema público, os médicos ineficientes serão obrigados ou a cobrar menos ou a atender mais ou a melhorarem seus serviços. As duas primeiras opções têm o efeito de abaixarem os preços devido à concorrência. Com preços gerais mais baixos, os médicos que já estavam no sistema privado podem ser obrigados a abaixarem seus preços se quiserem manter seus clientes.
4 - Como deve ser a implantação.
Primeiramente, há a possibilidade de vender os hospitais públicos. Os investidores compram esses locais e poderão usá-los como hospitais privados. Enquanto não são comprados, o governo os mantém funcionando.
Para maximizar o efeito benéfico, o governo pode diminuir as exigências dos cursos de medicina ou possibilitar que pessoas formadas em enfermagem, por exemplo, realizem mais tipos de tratamentos sem a necessidade de médicos.
A menor exigência nos cursos de medicina possibilitará mais faculdades. Mesmo que estas tenham um ensino inferior, isso aumentará o número de médicos. Esses médicos não conseguirão competir com os médicos formados em faculdades excelentes de medicina nos setores mais concorridos. A solução é disputar os setores menos concorridos - as pessoas com renda menor. Com o tempo e experiência, os médicos "ruins" irão melhorar e poderão competir em outros mercados. Vale dizer que uma pessoa pode achar melhor cursar rapidamente uma faculdade e começar a trabalhar logo do que ficar três anos no cursinho para um curso um pouco melhor. Os bons alunos dos cursos "piores" também terão a possibilidade de fazerem residência e se destacarem, pulando várias etapas.
Os enfermeiros têm conhecimentos para aplicarem vários tipos de tratamentos ou prevenções. Não podem realizar processo que exigem conhecimento preciso e aplicado, mas podem suprir algumas medidas que diminuam os riscos e até que possibilitam iniciar um tratamento. Por exemplo, indicar o que fazer em caso da criança comer algo estranho. Não é preciso da opinião do médico, só de uma pessoa que conheça o assunto. Aproveitar esse conhecimento é diminuir a sobrecarga de tarefas dos médicos.
Outra forma de melhorar o atendimento é diminuir tributações sobre equipamentos, por exemplo. Diminuir os custos possibilita que o sistema de saúde se torne mais competitivo.
5 - Sistema de saúde público não é incompatível com o uso de drogas.
Um dos argumentos que se utiliza para combater o uso de drogas é que o
sistema de saúde público irá tratar os viciados, o que corresponde a um problema
para toda a população.
Se essa lógica for verdadeira, o estado também poderia obrigar as
pessoas a praticarem atividades físicas, a comerem comidas saudáveis, a não se
expor ao sol das 10h às 16h etc.
Só porque o estado oferece o sistema
público de saúde, não significa que ele possa controlar a vida das pessoas. O
máximo que poderia fazer é não ofertar os serviços se a pessoa fazer
determinada ação.
Aceito visões contrárias, sugestões, críticas etc. nos comentários.
Tenham um bom dia!
Aproveitem para curtir a página no Facebook:
https://www.facebook.com/pages/Cop%C3%A1zio-de-Saber/1412921775615957
Links
Veja também a Entrevista com a médica Tatiana Villas Boas