segunda-feira, 1 de maio de 2017

Constituição e Democracia

     Estava me perguntando se deveria escrever algo aproveitando a greve ocorrida dia 28 de abril. Antes que o assunto esfrie de vez, lá vem mais uma postagem após tanto tempo.

     O tema mais geral trata de constituição e democracia, mas o tema específico é a greve em si. Vamos do mais geral:
     Pode-se tentar dizer que a democracia é "o governo do povo", ou "o governo da maioria". De forma mais precisa, diz-se que democracia na democracia o governo é "do povo" "para o povo". Vou tentar aprofundar um pouco.
     Penso que podemos fazer uma comparação entre três tipos de governo: monarquia, aristocracia e democracia. Não vou aqui fazer distinção com as formas corrompidas. A distinção ocorre em quem legitimamente pode governar. Na monarquia é exclusivamente o rei. Na aristocracia é um grupo de pessoas, uma elite. Na democracia o governo se dá diretamente pelo povo (democracia direta) ou por meio de representante (democracia indireta).
     Vamos prosseguir.
     Uma primeira questão que se pode colocar para qualquer tipo de governo, e, no nosso caso, mais especificamente para a democracia, é se esse governante pode regular sobre tudo ou não. Um rei pode decidir em prejuízo de um grupo de súditos, o povo pode decidir em prejuízo de uma minoria? Uma escolha envolve várias opções, e várias delas beneficiam mais um grupo do que outro, então é próprio do governo ter que se posicionar por vezes em favor de um grupo e não de outro. O problema está nos abusos.
      A democracia moderna surge em meio a teses filosóficas e políticas que apontam o povo como a origem do poder político. O contratualismo é a corrente que afirma que os indivíduos fazem um contrato social, em que abrem mão de sua liberdade absoluta para obterem algum outro bem, como segurança. A origem do Estado está justamente nesse ato coletivo de vontades individuais. E o povo dificilmente é unânime em qualquer tese, de modo que o processo decisório de uma forma ou de outra vai acabar envolvendo algum tipo de maioria. Mas há um limite para o poder da maioria? Um problema que já foi apontado desde Tocqueville e talvez até antes é que há a grande justiça de que cada cidadão tem igual poder de voto, mas há o problema de que as massas podem se mover pela paixão, e não pela razão. O fenômeno do populismo ilustra bem esse problema, mas não vamos nos aprofundar nele.
      Dentre os filósofos contratualistas, Hobbes já definia um limite para o governo. Se as pessoas saem do estado de natureza - antes do contrato social - para o estado de sociedade - depois do contrato social - por segurança (esse é o motivo segundo Hobbes), então não faz sentido perderem a segurança por decisão da maioria. O limite da ação do governo, em concreto, é quando atinge a vida do cidadão. A pena de morte seria uma violação do próprio contrato social, pois ninguém iria querer fugir para a sociedade se lá pode ser morta também. Alguns juristas, partindo dessa ideia, dirão que é possível retroagir a momentos de estado de natureza quando há perigo de morte, "a necessidade não tem lei".
     O pensamento liberal trouxe juntamente com a defesa do governo da povo uma limitação para o poder governamental, que são as liberdades individuais. Existe um conjunto de direitos que as pessoas possuem que jamais poderão abrir mão, mesmo se expressamente disserem que sim, que serão chamados de direitos humanos, e envolvem por exemplo a vida e a liberdade. Em princípio, a ideia de liberdade vinha da liberdade de religião, em um momento em que o rei queria impor uma crença ao povo. Mas logo se entendeu que as liberdades são maiores, liberdade de expressão, de locomoção, de ter posses.
     É bem razoável dizer que o indivíduo tem uma sujeição ao que decide a coletividade em uma democracia, porém há limites. Não pode a sociedade decretar que alguém se torne escravo ou que seja morto em motivo.
      Hayek compreendeu que o termo "democracia", que antes estava ligado a limites à esfera individual, em que o meio democrático de decisão compreendia não ser um poder absoluto, começou a se perder com o desenvolvimento de ideologias coletivistas, em especial citemos o socialismo. A ideia de Hayek para retomar a noção clássica de democracia, inseparável das liberdades individuais fundamentais, foi empregar o termo "demarquia", pois seria mais fácil definir um termo novo do que tentar impedir um termo antigo de perder seu significado. Aqui não concordarei com ele, e tento retomar a noção clássica (moderna): não existe democracia sem respeito aos direitos individuais.
      Tomemos outra limitação da democracia: estado de direito. Existe uma limitação formal (não só quanto ao conteúdo da decisão, mas quanto ao meio em que ela se dá). Diz-se que no estado de direito "ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer, senão em virtude da lei". Só a lei obriga. Por lei, não é qualquer decisão coletiva, mas é uma decisão coletiva que cumpre alguns critérios de formalidade. Por exemplo, uma enquete em uma rede social em que todos os brasileiros votem não é capaz de obrigar ninguém, pois não basta o ato de vontade ou a opinião de todos, é preciso de um rito, de um procedimento.
      A constituição é o documento que não só traz a forma de organização de uma sociedade, como também traz limites para o poder. Essencialmente, não é necessário que a constituição trate dos direitos fundamentais, mas na prática ela está tratando, e é bom para mostrar como está interligado o processo de organização com o respeito às liberdades, os meios para assegurar as liberdades e as metas do Estado.
      Com a ideia de que a Constituição traz também os valores e os limites do poder, não há democracia sem constituição, assim como não há democracia sem estado de direito, pois poder ilimitado na mão da maioria não é democracia, é ditadura.

      Apliquemos o que eu falei para o caso da greve.
      É preciso entender que, antes de tudo, a greve é um fenômeno político. Ela pode ocorrer mesmo sem regulação, mesmo a lei inclusive proibindo. A greve nesse sentido pode inclusive violar direitos humanos, depredar o patrimônio e cometer diversos abusos.
      Discute-se em seguida quando a greve é aceitável e quando não é. Vou pular minhas considerações pessoas e dizer alguns critérios legais. A lei tenta compatibilizar a manifestação dos trabalhadores com direitos individuais e a justiça.
      Por justiça, quem não trabalha não tem direito de receber. Há exceções, e inclusive é possível barganhar posteriormente o recebimento pelos dias de greve, mas a regra é que não é justo receber pelo que não fez.
      Vamos também explicitar que participar de uma greve não é simplesmente deixar de trabalhar, mas envolve uma manifestação, um ato que substitua o tempo do trabalho (o que não é trabalho mesmo assim). Quem não vai trabalhar em dia de greve para ficar em casa assistindo a TV não está participando da greve.
      Há critérios formais para a validade uma grave também, como avisar ao empregador com uma antecedência legal. Obviamente não se pode deliberar um dia antes e dizer "amanhã terá greve", e nem dizer "amanhã tem vários grupos entrando em greve" ou que "uma confederação de sindicatos incentiva uma paralização geral para amanhã", e "vamos decidir hoje, pois o empregador já deve saber da possibilidade de entramos em greve".
      Outro limite é que a greve não pode impedir quem queira trabalhar de trabalhar. Existe uma pressão social dos grevistas para ninguém trabalhar, pois o "fura greve" diminui o impacto econômico da greve para o empregador, o que diminui os prejuízos e aumenta a pressão, todavia a pressão social não pode ser coação. Ninguém pode ser impedido de trabalhar por meio de ameaças ou mesmo ferido se tentar trabalhar. Vamos às razões: a) se quem adere à greve não recebe, o trabalhador que não pode suportar o não recebimento ou que simplesmente deseja receber não pode ser obrigado a parar e a não receber; b) o trabalhador não pode arranjar outro emprego no tempo de greve, de modo que fazê-lo aderir à greve implica uma violação de seu direito de trabalho. De fato, o trabalho dignifica o homem e é o meio para ele obter o que precisa para seu sustento. Nenhuma sociedade pode simplesmente impedir alguém de trabalhar, assim como não pode impedir alguém de comer ou respirar.

      Momento desabafo
      Na prática tudo o que eu falei acima acontece sempre? Não. Há empregador que paga os dias parados sem saber que não precisa, há grevista que ameaça "fura greve".
      De alguma forma, quis traçar algumas linhas gerais sobre isso. Não fui exaustivo, mas dei a linha central do que precisava. O ponto não é tanto a conscientização dos direitos e dos deveres, mas a discussão de democracia e constituição, ou, mais especificamente, democracia e direitos individuais.
      "Me assusta", para usar uma expressão que ganhou alguma fama em meu meio, que estudantes de direito não consigam ter um ideia homogêna dessas duas coisas. Para defesa de minorias políticas há pessoas que dizem que a maioria não pode fazer tudo e que mesmo se sentem ofendidas se alguém diz que quem governa o faz para a maioria; ao mesmo tempo, pensam que uma entidade coletiva, como um sindicato, pode tomar decisões que impeçam as minorias numéricas de terem suas liberdades respeitadas. Um sindicato após uma votação pode de fato decretar greve, mas não pode obrigar a participar dela, há estudantes de direito que pensam que pode. Pensam que o processo democrático pode legitimar a alienação de direitos inalienáveis.


Eu sei, ficou grande, desorganizado e não exaustivo, mas acho que deu para entender a ideia central.
Boa noite