Contextualizando de forma bem resumida, em um programa, a Fátima Bernardes perguntou a vária pessoas quem eles prefeririam salvar, um traficante bastante ferido ou um policial levemente feiro. A maioria escolheu salvar o traficante ferido. Isso gerou alguma polêmica. O pessoal mais de direita disse que, de fato, em uma situação normal, se escolhe tratar a pessoa mais ferida, em quadro pior, porém no caso há a complexidade de haver uma pessoa benéfica à sociedade e outra prejudicial. Não se pode ver o traficante como uma "vítima da sociedade", mas uma pessoa que faz ações prejudiciais, que desrespeita a autoridade estatal, que ajuda a aumentar problemas sociais de criminalidade e violência, que lucra sobre vícios. E o policial também não pode ser visto como um opressor, um cara que trabalha para proteger os interesses das elites, contrários aos interesses das minorias.
Algo que chama bastante atenção nessa discussão toda foram dois sujeitos fardados que fizeram um vídeo perguntando se, em vez de um traficante, fosse um estuprador, por exemplo, que não goza de uma visão tão romantizada na sociedade. Perguntam e se a apresentadora fosse escolher quem salvar e fosse entre alguém que a tivesse estuprado ou um policial que a tivesse salvo. A "esquerda" reagiu dizendo que eles estavam ameaçando de estupro, incentivando o estupro ou algo assim.
Agora minhas opiniões.
Primeiro, os pontos de concordância. Concordo que o traficante muitas vezes deve ser visto e tratado como um sujeito que age contra a vida em sociedade. O policial também, em que pese algumas violações que fazem, são benéficos para a vida sociedade. Não dá para restringir a realidade em opressores e oprimidos, romantizando o crime como uma forma de vítimas da sociedade lutarem contra o sistema que os prejudica. O que acrescento é que o traficante também é um ser humano. Pelos seus crimes, pode sofrer privações, perda à liberdade, obrigação de se apresentar a uma autoridade periodicamente, fazer trabalhos voluntários, etc. Ocorre que o criminoso também é um ser humano, e essa condição não lhe pode ser negada.
Segundo, é besteira pensar que os sujeitos fardados ameaçaram ou incentivaram o estupro. Eles seguem uma tendência de militares de ter uma visão pragmática. Querem mostrar que quem salvasse o traficante na primeira situação, mas não o estuprador na segunda, seria um hipócrita. O argumento deles me chama atenção para a pergunta "quem você salvaria...". Note que não foi "O que é certo, salvar...". A pergunta não foi entre certo e errado, bom e mal, mas o que na prática seria feito. As pessoas tendem a fazer a escolha e argumentarem dizendo que é o certo, mas é possível que alguém diga que o certo é salvar determinada pessoa, mas que ela não conseguiria fazer isso. Essa resposta a tornaria hipócrita? Talvez.
Qual pergunta tentarei responder aqui? Acho que é pouco importante dizer quem eu salvaria. É de interesse da ética saber o que é o certo a ser feito.
Considerando que eu fosse um médico, como na situação que deu origem à pergunta, vou primeiro fazer um esclarecimento do termo utilizado. Foi terrível o termo "salvar". Essa palavra expressa uma ideia de tirar de uma situação de risco grave. Acho que socorrer o policial levemente ferido não o estaria salvando, pois ele, segundo o caso apresentado, estaria em uma situação estável, pouco ferido. O termo "salvar" se aplicaria somente para o traficante, que estaria ainda em uma situação de risco.
Pois bem, é óbvio que primeiro se deve salvar o sujeito em estado mais grave na opção entre ele e outro em um quadro estável. O médico, no exercício de sua arte, deve procurar salvar vidas, realizar o tratamento, evitar que a situação piore e diminuir as dores. Não cabe ao médico julgar o que cada um faz de sua vida. Tanto é que o médico tem dever de sigilo de coisas que tem conhecimento em virtude de sua profissão (há complexidades nessa discussão, mas não vou aprofundar nelas). O médico tem uma responsabilidade de agir sem privilegiar grupos ou indivíduos enquanto exerce sua arte. Violar essa obrigação implica um desrespeito à toda a comunidade médica, pois faz perder a credibilidade da classe. Médicos não podem declarar guerra a um grupo, por exemplo quem vive à margem da lei.
Tomemos o código de ética médica que traz a resolução 1.931 do Conselho Federal de Medicina:
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
É vedado ao médico
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto
O médico não pode escolher tratar alguém em primeiro ou em último lugar pela profissão. Deve avaliar por critérios técnicos como exercer da melhor maneira sua profissão. Existem verdadeiros dilemas médicos em que há critério técnico definido, mas no caso apresentado é claro que a melhor maneira de exercer a medicina é salvando quem está em risco e depois prestando assistência a quem não está.
A título de comparação, tomemos uma situação em que há um pai médico em que deve escolher socorrer entre seu filho e outra pessoa (um traficante, que seja, pode até ser quem fez o mal ao seu filho). Seu filho está em um quadro estável e a outra pessoa precisa de primeiros socorros para não morrer. É claro que nessa situação, em que pese ter o dever de assistir seu filho, ele deve socorrer primeiro a pessoa que estiver em risco crescente (se isso for oferecer rico a ele, não será preciso socorrer ao meu ver). Se, ao contrário, tivesse seu filho e outro em situações semelhantes, deve socorrer seu filho pelo dever de sua condição de pai.
A distinção entre pessoas pelo que fazem pode ser relevante em algumas situações, embora não sejam para o médico. Por exemplo, unidades policiais devem ter uma escala de prioridades entre policiais, vítimas e criminosos (criminosos executando a ação). Há alguma divergência sobre qual será a prioridade, mas ter prioridade nesse caso é lícita moralmente. Não se está propriamente fazendo um julgamento, mas sim executando um ato de defesa. Assim como na legítima defesa o que se faz não é atacar ou julgar o agressor, mas se defender. Na legítima defesa também é lícito fazer uma escala entre sua vida, a de terceiro e a do agressor, por exemplo - há quem prefira ser agredido do que ferir o agressor mortalmente, porém pode ao mesmo tempo preferir proteger terceiro mesmo que isso signifique matar o agressor, pois o terceiro não fez a mesma escolha que ele.
Também parece-me perfeitamente justificável que cinemas e agências de ônibus, por exemplo, tenham uma cota para policiais poderem acessar seus serviços com desconto ou sem pagar nada (ao mesmo tempo em que não fazem o mesmo para traficantes, por exemplo). Isso é uma forma válida de demonstrar apreço por essa profissão. Ocorre que o médico não presta um serviço equiparável a esses serviços de transporte e entretenimento, pois ao envolver a vida e a saúde a dignidade humana fala muito mais alto.
Minha conclusão é que é preciso que a "direita" consiga enxergar corretamente as situações sem querer louvar o policial. E sem querer pensar que aquilo que a maioria das pessoas fazem é o correto - se poucos tiverem a fortaleza de salvarem alguém que faz coisas repugnantes, nem por isso a maioria está correta.
Espero não gerar polêmicas desnecessárias, mas estou aberto a discussões
Tenham um bom dia
Link para a resolução do CFM
https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf