sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Salvar o policial ou o traficante?

     Finalmente, uma opinião minha que difere da maior parte do pessoal considerado de "direita". Isso não significa que eu concorde com tudo o que a "esquerda" diz. Vamos lá.
     Contextualizando de forma bem resumida, em um programa, a Fátima Bernardes perguntou a vária pessoas quem eles prefeririam salvar, um traficante bastante ferido ou um policial levemente feiro. A maioria escolheu salvar o traficante ferido. Isso gerou alguma polêmica. O pessoal mais de direita disse que, de fato, em uma situação normal, se escolhe tratar a pessoa mais ferida, em quadro pior, porém no caso há a complexidade de haver uma pessoa benéfica à sociedade e outra prejudicial. Não se pode ver o traficante como uma "vítima da sociedade", mas uma pessoa que faz ações prejudiciais, que desrespeita a autoridade estatal, que ajuda a aumentar problemas sociais de criminalidade e violência, que lucra sobre vícios. E o policial também não pode ser visto como um opressor, um cara que trabalha para proteger os interesses das elites, contrários aos interesses das minorias.
     Algo que chama bastante atenção nessa discussão toda foram dois sujeitos fardados que fizeram um vídeo perguntando se, em vez de um traficante, fosse um estuprador, por exemplo, que não goza de uma visão tão romantizada na sociedade. Perguntam e se a apresentadora fosse escolher quem salvar e fosse entre alguém que a tivesse estuprado ou um policial que a tivesse salvo. A "esquerda" reagiu dizendo que eles estavam ameaçando de estupro, incentivando o estupro ou algo assim.

     Agora minhas opiniões.
     Primeiro, os pontos de concordância. Concordo que o traficante muitas vezes deve ser visto e tratado como um sujeito que age contra a vida em sociedade. O policial também, em que pese algumas violações que fazem, são benéficos para a vida sociedade. Não dá para restringir a realidade em opressores e oprimidos, romantizando o crime como uma forma de vítimas da sociedade lutarem contra o sistema que os prejudica. O que acrescento é que o traficante também é um ser humano. Pelos seus crimes, pode sofrer privações, perda à liberdade, obrigação de se apresentar a uma autoridade periodicamente, fazer trabalhos voluntários, etc. Ocorre que o criminoso também é um ser humano, e essa condição não lhe pode ser negada.
     Segundo, é besteira pensar que os sujeitos fardados ameaçaram ou incentivaram o estupro. Eles seguem uma tendência de militares de ter uma visão pragmática. Querem mostrar que quem salvasse o traficante na primeira situação, mas não o estuprador na segunda, seria um hipócrita. O argumento deles me chama atenção para a pergunta "quem você salvaria...". Note que não foi "O que é certo, salvar...". A pergunta não foi entre certo e errado, bom e mal, mas o que na prática seria feito. As pessoas tendem a fazer a escolha e argumentarem dizendo que é o certo, mas é possível que alguém diga que o certo é salvar determinada pessoa, mas que ela não conseguiria fazer isso. Essa resposta a tornaria hipócrita? Talvez.
     Qual pergunta tentarei responder aqui? Acho que é pouco importante dizer quem eu salvaria. É de interesse da ética saber o que é o certo a ser feito.

     Considerando que eu fosse um médico, como na situação que deu origem à pergunta, vou primeiro fazer um esclarecimento do termo utilizado. Foi terrível o termo "salvar". Essa palavra expressa uma ideia de tirar de uma situação de risco grave. Acho que socorrer o policial levemente ferido não o estaria salvando, pois ele, segundo o caso apresentado, estaria em uma situação estável, pouco ferido. O termo "salvar" se aplicaria somente para o traficante, que estaria ainda em uma situação de risco.
     Pois bem, é óbvio que primeiro se deve salvar o sujeito em estado mais grave na opção entre ele e outro em um quadro estável. O médico, no exercício de sua arte, deve procurar salvar vidas, realizar o tratamento, evitar que a situação piore e diminuir as dores. Não cabe ao médico julgar o que cada um faz de sua vida. Tanto é que o médico tem dever de sigilo de coisas que tem conhecimento em virtude de sua profissão (há complexidades nessa discussão, mas não vou aprofundar nelas). O médico tem uma responsabilidade de agir sem privilegiar grupos ou indivíduos enquanto exerce sua arte. Violar essa obrigação implica um desrespeito à toda a comunidade médica, pois faz perder a credibilidade da classe. Médicos não podem declarar guerra a um grupo, por exemplo quem vive à margem da lei.
     Tomemos o código de ética médica que traz a resolução 1.931 do Conselho Federal de Medicina:
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
É vedado ao médico
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto
      O médico não pode escolher tratar alguém em primeiro ou em último lugar pela profissão. Deve avaliar por critérios técnicos como exercer da melhor maneira sua profissão. Existem verdadeiros dilemas médicos em que há critério técnico definido, mas no caso apresentado é claro que a melhor maneira de exercer a medicina é salvando quem está em risco e depois prestando assistência a quem não está.

     A título de comparação, tomemos uma situação em que há um pai médico em que deve escolher socorrer entre seu filho e outra pessoa (um traficante, que seja, pode até ser quem fez o mal ao seu filho). Seu filho está em um quadro estável e a outra pessoa precisa de primeiros socorros para não morrer. É claro que nessa situação, em que pese ter o dever de assistir seu filho, ele deve socorrer primeiro a pessoa que estiver em risco crescente (se isso for oferecer rico a ele, não será preciso socorrer ao meu ver). Se, ao contrário, tivesse seu filho e outro em situações semelhantes, deve socorrer seu filho pelo dever de sua condição de pai.

     A distinção entre pessoas pelo que fazem pode ser relevante em algumas situações, embora não sejam para o médico. Por exemplo, unidades policiais devem ter uma escala de prioridades entre policiais, vítimas e criminosos (criminosos executando a ação). Há alguma divergência sobre qual será a prioridade, mas ter prioridade nesse caso é lícita moralmente. Não se está propriamente fazendo um julgamento, mas sim executando um ato de defesa. Assim como na legítima defesa o que se faz não é atacar ou julgar o agressor, mas se defender. Na legítima defesa também é lícito fazer uma escala entre sua vida, a de terceiro e a do agressor, por exemplo - há quem prefira ser agredido do que ferir o agressor mortalmente, porém pode ao mesmo tempo preferir proteger terceiro mesmo que isso signifique matar o agressor, pois o terceiro não fez a mesma escolha que ele.
     Também parece-me perfeitamente justificável que cinemas e agências de ônibus, por exemplo, tenham uma cota para policiais poderem acessar seus serviços com desconto ou sem pagar nada (ao mesmo tempo em que não fazem o mesmo para traficantes, por exemplo). Isso é uma forma válida de demonstrar apreço por essa profissão. Ocorre que o médico não presta um serviço equiparável a esses serviços de transporte e entretenimento, pois ao envolver a vida e a saúde a dignidade humana fala muito mais alto.

     Minha conclusão é que é preciso que a "direita" consiga enxergar corretamente as situações sem querer louvar o policial. E sem querer pensar que aquilo que a maioria das pessoas fazem é o correto - se poucos tiverem a fortaleza de salvarem alguém que faz coisas repugnantes, nem por isso a maioria está correta.

Espero não gerar polêmicas desnecessárias, mas estou aberto a discussões
Tenham um bom dia

Link para a resolução do CFM

https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Existência de santos e o comunismo

     Após um longo tempo, vou escrever algo no blog. Eu não tinha muitas ideias do que poderia escrever que acrescentasse às discussões e fosse compatível com o blog. Hoje, porém tenho um assunto que percebo que não foi bem abordado: a incompatibilidade entre a existência de santos e o comunismo. O primeiro ponto não é original, mas acho que vale a pena apontar já que é pouco comentado. O segundo ponto não é totalmente original, mas é minha maior contribuição neste post.

1 O comunismo só seria possível em um mundo de santos?

     Muitos desavisados afirmam que o comunismo só seria possível em um mundo em que todos sejam santos, que ninguém queira fraudar o sistema, que todos se aceitem completamente etc. Pois bem, atrevo-me a dizer que o sistema de produção socialista não funcionaria mesmo que todos fossem santos.
     Antes de prosseguir, vou explicar alguns termos que eu estou usando aqui. Temos que tomar cuidado com a palavra "santo", pois pode ter vários significados. O primeiro é o significado próprio, teológico, que significa uma pessoa que não tem pecados e pode ir direto ao paraíso caso morra, se destaca pela ligação com Deus, de modo que ninguém pode ser santo sem a graça de Deus (Deus quer que todos sejam santos e permite que todos os sejam se se esforçarem, mas a santidade não depende só do homem, mas da ação de Deus). O segundo significado é de "alguém muito bom" ou algo nesse sentido. Nesse significado, pode-se pensar que o homem pode ser santo, totalmente bom, sem a graça de Deus, ou se pode relativizar o sentido de santidade, pensando que o homem santo seria uma pessoa muito boa, mas não perfeita.
     Neste primeiro ponto, estou pensando no socialismo do ponto de vista de um sistema econômico. Pode ser definido como o sistema de produção em que o controle dos meios de produção pertence à sociedade como um todo. Difere do capitalismo, em que o controle dos meios de produção pertence a indivíduos (o capitalismo tem outras características também, mas por enquanto basta).
     O que pretenderei explicar aqui é que mesmo que todas as pessoas vivam pensando no bem da sociedade, mesmo que não tenham nem mesmo a intenção de fazer qualquer mal, mesmo que não tenham qualquer tentação oportunista, mesmo assim o sistema de produção socialista não seria próspero. Por próspero eu quero dizer que não será capaz de organizar de forma muito complexa os meios de produção, que não conseguirá coordenar corretamente os fatores de produção de forma a gerar muitas riquezas.
      Existem dois tipos de bens (coisas que os seres humanos dão valor): bens de consumo e bens de produção. Os bens de consumo são aqueles a que os seres humanos dão valor diretamente, é aquilo que satisfaz as necessidades humanas (qualquer tipo de necessidade, pode ser o mero desejo de acúmulo, não precisa ser fisiológico). Os bens de produção são aqueles que têm valor enquanto úteis para a obtenção de bens de consumo. Os bens de produção podem ser empregados para a obtenção de vários bens de consumo - uma porção de terra pode ser usada para produzir frutas diversas, para criar animais, para construir casas etc. Daí surge a necessidade de se definir como empregar os meios de produção para produzir da melhor forma os meios de consumo. Mises definem 5 tipos possíveis, mas nos interessa aqui diferenciar o capitalismo do socialismo. No capitalismo a sociedade se organiza de modo a que cada agente privado possa empregar os meios como quiser. No socialismo, será preciso que a sociedade tome decisões em conjunto (normalmente por uma instituição de representação).
     Aqui exige a necessidade de um choque de realidade. A realidade é muito complexa. Os gostos das pessoas se alteram a cada momento, o que uma pessoa quer um dia é diferente do que quer no outro. O clima é imprevisível e se altera sempre, assim como as limitações dos animais e dos vegetais. Sendo o mundo tão instável, é preciso de um meio para que a coordenação dos meios de produção seja adaptada a cada momento. Um arranjo bom em um dia não será bom em outro. No capitalismo, isso funciona pelo sistema de preços. Um aumento de preço indica menos bens de produção disponíveis ou maior demanda. Diminuição de preço indica menos bens de produção ou menor demanda. Os agentes de mercado reagem buscando lucro. Eles irão buscar no mercado situações em que falta uma coordenação, em que está abaixo do ótimo e tentarão melhorar a situação, tomando para si parte dos ganhos sociais. Como as pessoas são diferentes, podem ter percepções diferentes e vivem em contextos diferentes isso implicará necessariamente em uma desigualdade no emprego de bens de produção, o que para o capitalismo não é algo ruim em si. Não vale a pena me alongar aqui em críticas e vantagens do capitalismo, fiz mais uma descrição.
     No socialismo os bens são comunitários, pertencem a todos. Em sociedades em que não há escassez, isso não gera problemas. Por exemplo, se existir uma sociedade em que todos os bens de consumo estão disponíveis assim como o ar, não existirá problema econômico e nem economia, pois as pessoas simplesmente terão acesso a aquilo que precisam para saciarem suas necessidades. Em sociedades um pouco mais realistas e mais complexas, os bens não são escassos. É preciso escolher como bens serão usados, a começar pelo tempo, o bem escasso por excelência: gastar uma hora plantando ou cortando lenha ou colhendo frutas? O que fazer com as porções de terra? Cortar uma árvore para produzir lenha ou esperar um ano para ver se ela dá mais frutos? Essas escolhas são fáceis quanto mais impactarem os bens de consumo. É mais fácil escolher entre gastar o tempo cozinhando ou cortando lenha do que entre plantar feijão e criar gado, e este é mais fácil do que escolher entre construir uma ponte ou pavimentar uma estrada, que é mais fácil do que escolher entre construir uma ferrovia ou criar uma usina hidroelétrica. Quanto mais os bens de produção são usados para produzirem outros bens de produção, mais a economia se complexifica e as escolhas se tornam difíceis, mais as variáveis próprias da realidade dificultam o planejamento. O socialismo não consegue dar uma boa resposta para o problema da coordenação dos fatores de produção, isso ocorre por a racionalidade humana ser limitada. O ser humano consegue coordenar fatores de produção de forma menos complexa, como um fazendeiro cuidado de sua fazenda, mas não grandes sistemas econômicos. O advento de tecnologias não soluciona o problema, pois ainda existe um limite da capacidade de processamento de uma unidade centralizada. A solução é ou ter sociedades simples (o que não é necessariamente ruim, embora não seja próspera) ou não empregar os sistema.
     No capitalismo, existe uma coordenação que não decorre da necessidade de uma racionalidade centralizada, com capacidade infinita de processamento, mas cada ser humano pode atuar em um setor da economia. Isso só é possível pelo sistema de preços conseguir traduzir as variáveis em um mesmo denominador: o preço (existem tentativas teóricas de fazer algo semelhante no socialismo, mas adianto que não são satisfatórias). Daí não é preciso que cada indivíduo saiba as circunstâncias gerais da sociedade, apenas que consiga traduzir o preço de forma a conseguir lucrar, e o lucro é uma forma também de sinalizar para a economia.
     Agora a sociedade de santos e o socialismo. Mesmo que todas as pessoas em um sistema econômico socialista queira o bem da sociedade, queira dar o máximo de si para trabalhar, ainda exige a necessidade de coordenar os esforços humanos. Santidade (no sentido de pessoas muito boas) não implica que as pessoas saibam o que precisa ser feito para a sociedade, de modo que ainda será preciso de um poder central determinando o que fazer. E mesmo santos não têm razão ilimitada. Por conclusão, uma sociedade socialista, mesmo que seja composta de santos, não pode ser próspera, embora possa ser pequenas comunidades de subsistência (ou algo um pouco acima da subsistência), o que não é necessariamente algo ruim.
     Agora, se tivermos uma sociedade em que os seres humanos não são santos, a complexidade aumenta muito. Isso por ser preciso lidar com o oportunismo, com medidas antissociais, com egoísmos, com o desejo de dominação, e de preguiça.

2 A existência de santos refuta a teoria socialista?

    O que tentarei dizer aqui é se a existência de santos em algumas situações, como um São Francisco, um São Thomas More, uma Santa Teresa de Calcutá, implicam na invalidade da teoria socialista. Por santos, quero dizer pessoas que em situações improváveis (no próprio mundo, em última análise), conseguem viver na total caridade. Existe uma diferença entre caridade e filantropia, mas não convém explicar aqui. Pela teoria socialista, quero dizer um conjunto mais ou menos ordenado de ideias que afirma ser possível construir uma sociedade em que todos sejam santos (entendidos aqui como pessoas muito boas, que vivem pensando no bem comum).
     Vou tentar contextualizar a pergunta. O socialismo procura diferenciar na sociedade grupos oprimidos e grupos opressores. Uma sociedade socialista (comunista, como alguns preferem) seria aquela em que não há essa distinção, sendo que todos cooperam para o bem comum de forma estável (isso significa que uma pessoa individualista nesta sociedade não existe ou será convertida ou será eliminada). Os grupos são divididos em função de um tipo de poder fático, que pode ser de diversos tipos. Em uma teoria socialista mais clássica, esse poder seria o controle dos bens de produção. Pode-se entretanto, apontar que esse poder pode ser um poder ideológico ou religioso também. Note que uma teoria socialista busca associar um tipo de poder a um tipo de opressão. O opressor não é somente quem oprime, mas é analisado (daí a ideia de uma teoria) em conjunto de outros opressores, que têm um mesmo tipo de poder e oprimem de um modo mais ou menos padronizado. Enquanto isso, o oprimido é analisado como aquele que não tem um determinado poder, ficando sujeito ao opressor. Para nossa questão, não levamos em consideração santos que surgiram dentre o grupo dos oprimidos, que os socialistas poderiam considerar como alienados. O que é tão interessante é a existência de pessoas que surgiram em posições "privilegiadas", em posições em que pertenciam a grupos que tinham poderes que seriam considerados opressores. São Francisco de Assis nasceu em uma família rica, por exemplo. Mesmo assim, os santos abdicam desse poder se tornando "oprimidos" ou o usam de forma boa, não no próprio interesse (ou no interesse de sua classe). A existência de tais homens, que, segundo a teoria socialista, deveriam ser opressores, invalida a teoria?
     Em princípio, pensava que não. Pensava que a teoria faz uma análise macro de um fenômeno, não pretendendo trabalhar com modelos, simplificações da realidade, tal como um químico considera valores aproximados, condições ideais, considera que existe um processo contínuo de evaporação e liquefação ao mesmo tempo, que as moléculas estão em movimento constante, podendo haver variações de pressão em cada instante. Uma teoria simplifica um pouco a realidade para permitir estudar tendências, fenômenos semelhantes etc. Até Marx, no Capital, apresenta para a abordagem econômica o que ele chama de trabalho socialmente necessário. O valor das coisas seria medido nesse trabalho socialmente necessário, que seria obtido a partir do que um homem médio dispende para a produção de um bem. Pela ação das massas, aquele que produz mais acaba compensando o que produz menos, levando um tempo mais ou menos padronizado, que seria obtido quando o indivíduo perdesse importância diante do esforço coletivo.
     Qual o problema? Por que mudei de ideia? Caso essa explicação seja a explicação correta, isso significa que a teoria econômica não exaure a realidade, no sentido de ser uma simplificação de processos sociais. Tal teoria não poderia suportar a criação de uma sociedade perfeita, estável, com absolutamente todos os homens vivendo em prol do bem comum. Se a teoria consegue tolerar a existência de santos, não iria também aceitar dentro de sua "margem de erro" pessoas opressoras dentro de grupos oprimidos? Ou exceções dentro das sociedades comunistas? Movimentos extremistas não cometeriam injustiças com indivíduos em ações que visassem declarar guerra a grupos inteiros? Daí está a origem de diversas falácias. Alguns negros foram oprimidos por alguns brancos, logo todos os brancos devem ser penalizados em benefício de todos os negros (alguns aqui não significa uma minoria numérica, mas uma parcela).
     A verdade ao meu ver é que as teorias socialistas realmente fazem uma simplificação, mas também realmente acreditam que a simplificação condiz com a realidade. Atribuem poder muito elevado para a inocência de um "bom selvagem" e para a corrupção das instituições, eliminando o livre arbítrio individual. Na verdade, pensam, a sociedade é feita por grupos, e não por indivíduos. Sendo algo dinâmico, os indivíduos influenciam os grupos também, porém seu papel é frágil, limitado. A teoria socialista irá dizer que santos não existem, uma vez que uma visão tão materialista se fecha para a existência da autêntica santidade. A existência de santos conflita com a teoria socialista, que nega a ação do transcendente no mundo, que se baseia em poderes fáticos, e despreza a existência de valores atemporais.

     Se realmente a existência de santos refuta a teoria socialista, uma próxima pergunta seria: santos existem? Essa pergunta, creio que vocês já podem procurar em outros lugares mais gabaritados do que este meu blog.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O ser e o dever-ser na ética

     Bom dia. Após algum tempo parado, vem mais uma postagem. Não creio que retomarei as postagem na mesma frequência que antes, mas não abandonei o blog.

     Pois bem, existe no direito uma afirmação bem conhecida em que se afirma que do "ser" não se pode extrair o "dever-ser". A afirmação diz que um conhecimento do "ser" das coisas, de como as coisas são, de como os seres humanos se comportam socialmente, não se pode extrair o "dever-ser", regras de como o ser humano deve se comportar. O fato de seres humanos se sentirem felizes ao fazerem coisas não implica nessas coisas serem boas. O fato de seres humanos matarem ou não gostarem que se mate não pode permitir que se conclua que o homicídio deva ser proibido ou permitido.
     Essa corrente, muito empregada por positivistas, parte de uma lógica que tem considera muito sólido o método científico (aqui entendido especialmente o aspecto de observar fatos). O método científico não pode ser utilizado, segundo os positivistas, para se definir o direito. Entretanto, concluem que o método científico pode ser empregado para estudar o direito. Assim como a química estuda as substâncias químicas e suas reações, a ciência do direito estuda as normas (envolvendo suas diversas fontes, como leis, costumes, decretos etc.). O direito seria um fato que não decorre deterministicamente da natureza, mas sim da vontade humana, e como fato poderia ser estudada não de forma a se buscar uma verdade de como o comportamento deveria ser, mas como aquele ordenamento jurídico permite ou obriga comportamentos. O positivismo também prega um independência entre ética e direito, em que o direito decorre da vontade humana, e a ética não. Com esse breve parágrafo espero não ter dito nenhuma absurdidade.

     Mas observemos um pouco mais atentamente a afirmação de que o dever ser (sentido de obrigações, deveres) não decorre do ser. Há de se concordar que bem e mal não são partículas nem energias físicas. Ocorre que o "ser" das coisas não pode ser reduzido à matéria. Aristóteles disse que se pode explicar as coisas por meio de quatro causas: material (do que as coisas são feitas ou a partir do que as coisas são feitas), formal (o que faz da coisa aquilo que é), eficiente (quem/o que fez a coisa) e final (para que a coisa foi feita). A título de exemplo, uma faca tem por causa material o metal (pode ter madeira e outras coisas também, mas imaginemos uma faca sólida de metal), por causa formal a organização do metal de forma fina e alongada, por causa eficiente o ferreiro (a causa eficiente pode ter diversos graus, pode ser a arte de dobrar o metal, pode ser o líder que deu ordem a um ferreiro de uma corporação para fazer o metal etc.), e por causa final a habilidade de cortar (a causa final pode ter também vários graus, pode ser cortar determinado objeto, por exemplo, ou se defender).
     Finalidade pressupõe sentido, mas não pressupõe um agente racional. Ao se explicar que a chuva cai para regar as plantas, se indica finalidade, mas não se indica que alguém ou algo fez a chuva para regar as plantas, apenas indica a destinação da chuva, sendo que pode ou não cumprir essa finalidade (assim como a faca pode ou não ser empregada para a finalidade dos agentes envolvidos em sua causa eficiente).
     A explicação científica, partindo da observação, se direciona para a explicação de uma realidade material, focando especialmente na causa material. Perguntam mais a partir do que uma reação química é feita (causa material), por exemplo, do que o que faz do fogo o fogo (causa formal), quem deu origem à reação (causa eficiente) e abstrai a finalidade da reação (para o cientista independe de porque alguém quis fazer a reação; a finalidade é apenas a produção de uma nova substância). Com isso, a ciência se especifica para responder algumas questões, mas deve estar ciente de que é incapaz de responder todas as perguntas.

     Pois bem, penso que a ética tem relação com a causa final do ser humano e de coisas relacionadas com o ser humano. A ética seria, analogicamente, como um manual de instruções para o ser humano se realizar enquanto ser humano, assim como um manual de automóvel tem as instruções para o automóvel ser bem empregado enquanto automóvel. A ética não obriga fisicamente a se fazer algo, mas obriga moralmente. Assim como o manual não pode forçar alguém a utilizar bem o carro, mas obriga a pessoa em sua consciência a usar o carro do modo certo. Uma investigação ética não pode, portanto, deixar de lado a razão, pois a razão é o instrumento que permite identificar uma relação de finalidade (relação que só o ser humano pode identificar pela sua habilidade intelectiva). De fato, a razão não é empregada de modo a se estudar fatos (método científico), mas sim investigar a realidade humana de modo a abarcar sua totalidade (focando na causa formal).
      Interessante notar aqui a relação entre causa formal e causa final. A faca tem por causa formal a organização da matéria de modo a ter uma instrumento cortante, e a habilidade de cortar é sua causa final. A habilidade de cortar está relacionada tanto na causa formal quanto final. Daí a investigação ética, ao se focar na causa final, necessariamente deve estudar a causa formal do ser humano; para saber como o ser humano se realiza enquanto ser humano, é preciso saber o que faz do ser humano um ser humano.
     Aqui vem a lógica jusnaturalista (contrária e anterior à positivista) - ao se conhecer, mesmo que parcialmente, regras e princípios que permitem que o ser humano se realize enquanto ser humano (realização de sua causa final), as organizações humanas (inclusive o direito - lei humana) devem se subordinar a essas regras e princípios que decorrem da natureza humana (causa formal). Assim, há uma hierarquia aqui. As leis morais mais fundamentais são hierarquicamente superiores à leis humanas, e a lei humana é inválida e ilegítima se não obedecê-las. Ao contrário do que prega o positivismo, não há uma lógica de se extrair da causa material leis, mas sim de se extrair da causa formal tendo em vista a causa final o modo que o ser humano deve se comportar.
     A obrigatoriedade moral não é simplesmente dizer que "é próprio do ser humano ser livre, logo o ser humano deve ser livre e é imoral o que o aprisiona", mas sim que "é próprio do ser humano ser livre, e ser livre é a única forma de se realizar enquanto ser humano, assim é imoral o que o aprisiona" (obviamente, não se defende aqui a liberdade absoluta, mas se dá um exemplo concreto de como funciona a ética).
     Assim, a ética e seus deveres não devem ser vistos como um jugo sobre o ser humano, mas como o caminho para se realizar. Correntes filosóficas existem que negam que haja uma causa final no ser humano ou que é possível traçar tal caminho na ética, mas isso é assunto para outro dia.


Bom dia

sábado, 25 de junho de 2016

Símbolos religiosos em espaços públicos

     Boa tarde, caros senhores, senhoras e senhoritas. A minha agenda estava muito corrida e não pude correr atrás de postagens para o blog. Só quero lembrar que muito do que eu posto não é verdade absoluta, embora minhas pesquisas apontem para esse sentido e seja o que eu no momento considere o correto. Isso significa que não estou isento de críticas.

     Pois bem, o texto de hoje é o símbolo religioso em espaços públicos. Para isso terei que passar por conceitos sobre laicidade, laicismo, Estado confessional, Estado ateu, Estado teocrático. Primeiro vou diferenciar os tipos de Estados que citei.

     Tanto o Estado confessional quanto o teocrático têm uma religião oficial. Há uma diferença entre os dois. No estado teocrático, não há uma separação entre o poder religioso e o poder secular. Há fontes [1] que indicam que o poder político está subordinado ao poder religioso. Isso ocorria com as religiões antigas, como os egípcios da antiguidade. Hoje o exemplo são vários países islâmicos. Embora em alguns casos não haja de fato divisão entre poder político e religioso, pode-se dizer que no estado teocrático os poderes que consideramos próprios do Estado estão subordinados ao poder que consideramos religioso.
     Já no Estado confessional, é comum afirmar que existe um predomínio do poder político sobre o religioso [1]. Aqui são poderes propriamente distintos, mesmo que o poder político tenha uma parcialidade em relação à religião [2]. Por ser a religião oficial, essa religião é incentivada pelo poder secular. As monarquias absolutistas eram Estados confessionais.
     O Estado ateu guarda proximidade com os dois acima. Mesmo que não professe religião específica, esse tipo de Estado se declara contrário a qualquer religião. [1] Aqui os poderes que seriam propriamente religiosos começam a ser abarcados pelo poder político, por exemplo aquilo que afeta a consciência individual pode ser regulado pelo poder secular. É bem conhecido como exemplo os Estados comunistas, que pregam ideologias materialistas contrárias ao espiritual.

     Aqui é interessante fazer algumas observações. Nenhum dos tipos de Estado acima são necessariamente intolerantes no sentido de proibirem práticas religiosas diferentes (ou todas no caso do Estado ateu) ou obrigarem determinadas práticas. É possível que se incentive uma religião (ou nenhuma) sem que seja obrigatório realizar suas práticas; é possível também que incentive uma religião e não incentive outras, que coabitam com a religião oficial sem alguns privilégios. No entanto, também os três tipos podem ser intolerantes no sentido de proibirem outras religiões, perseguirem quem não segue a religião oficial (ou o ateísmo).

     Ao contrário dos três acimas o Estado laico (secular/ não confessional) não professa nenhuma posição sobre religião. O Estado laico não é apenas neutro em relação à religião em si como ao ateísmo e agnosticismo. [2] O Estado laico pode inclusive incentivar a religiosidade da população, embora não deva incentivar uma religião específica.
     Uma degeneração do Estado laico é o Estado laicista, que se aproxima do Estado ateu (assim como pode degenerar para um Estado confessional; aqui uso a palavra "degenerar" como perda do seu sentido original, sem conotação negativa necessária). Nesse caso, em vez de incentivar a religiosidade, o Estado passa a querer eliminar manifestações religiosas da vida pública. Não há mais respeito por qualquer coisa religiosa por parte do Estado, mas uma intolerância. [3] Há uma dificuldade em diferenciar um Estado laicista de um Estado ateu. Uma possibilidade que vejo seria diferenciá-los ao afirmar que o Estado laicista deveria ser laico, mas se corrompeu, enquanto o Estado ateu é desde seus fundamentos ateu; na prática, porém não mostrando diferenças socialmente visíveis. Em tese um Estado laicista poderia ser também anti-ateu sem ser a favor de religião. Isso seria possível por uma intolerância agnóstica em que seria como dizer "não se sabe quem está certo, qualquer uma das religiões ou o ateísmo, então vão todos perder o direito de se expressar publicamente".
     Nas palavras do Pe. Davi Francisquini, no laicismo se diz:
“Como você tem uma convicção religiosa, não pode impô-la a mim. Mas eu que sou agnóstico ou ateu, posso impor a minha a você”
     Aqui algumas observações. O respeito do Estado laico pode ocorrer de forma a receber bem argumentos e exemplos de pessoas de notável conhecimento ou moralidade, a exemplo de vários santos. No entanto, não é por respeitar como argumento de autoridade o que dizem os santos que está sendo favorável à Igreja Católica. Basta que não seja a religião dos santos o elemento a ser verificado, mas a pessoa. Assim, também se consideraria o exemplo de Buda, de Gandhi etc. sem pregar a religião que professam essas pessoas. O laicismo começa a ocorrer quando ao se citar um santo e seu modelo de vida ou ensinamentos, se passa a ter uma visão de que se quer "impor uma religião" e passa a desconsiderar o que foi dito ou mesmo a reprimir essa manifestação. No Estado laico, um pastor pode ser deputado e um padre de batina pode participar como "amicus curiae" sem qualquer ofensa à religião alheia desde que tenham esse respeito às outras religiões; no laicismo a simples presença de alguém ligado a uma religião pode ser má vista.

     Quanto aos símbolos religiosos, finalmente.

     A priori, como o laico não pode incentivar nenhuma religião em particular, deve-se tomar cuidado com crucifixos em tribunais, por exemplo. Ocorre que o Estado laico não deve rejeitar de imediato símbolos religiosos por serem religiosos. Assim como a priori o Estado não deve aceitar um retrato de qualquer pessoa (como um familiar de alguém da prefeitura) no hall de entrada, mas sim se representar culturalmente e socialmente um valor ligado ao Estado (como ser o fundador da cidade, ou alguém que realizou uma doação importante em algum momento), o Estado pode aceitar símbolos religiosos cujo significado expanda o religioso, sendo, por exemplo, um símbolo de conhecimento ou valor (como o Bastão de Esculápio da medicina e a deusa Têmis vendada, com espada e balança da justiça), histórico (como nomes de cidades), turístico (Cristo Redentor), artístico (não sei um exemplo bom, mas por hipótese se a prefeitura tem uma imagem de uma passagem bíblica na parede) etc.. Tais símbolos não podem ser recusados, destruídos, escondidos pelo simples fato de serem religiosos e de domínio do poder público.
     Quanto ao crucifixo em tribunais, argumenta-se que seja um símbolo cultural [4]. O Brasil teve fundação católica e herdou muito dessa história, inclusive símbolos. Assim como o direito e a medicina herdaram símbolos citados de mitologias antigas, há uma herança do catolicismo, sendo o crucifixo símbolo, dentre outros, de amor e justiça.

    Além das referências abaixo indico o vídeo do Pe. Paulo Ricardo especialmente aos católicos e cristãos.


Tenham uma boa tarde. Espero publicar mais em breve


Referências

[1]http://www.hugogoes.com.br/2013/04/estado-laico-teocratico-e-ateu.html
[2]http://www.conjur.com.br/2012-mar-21/estado-laico-nao-sinonimo-estado-antirreligioso-ou-laicista
[3]https://pt.zenit.org/articles/estado-laico-nao-e-estado-laicista/
[4]http://www.conjur.com.br/2007-mai-29/uso_simbolo_nao_fere_carater_laico_estado_cnj  

Extra: Argumento "multirreligioso"

     Argumenta-se que um símbolo religioso só poderia ser aceito se se colocassem todos os símbolos religiosos em respeito a outras religiões. Esse argumento não procede. Uma vez que o que se avalia não é se expressa essa ou aquela religião, o símbolo não é escolhido por ser religioso, daí não foi uma opção propriamente religiosa.
     Ademais, se a escolha foi em virtude de uma religião por um motivo específico que justifique uma religião ser escolhida para se manifestar (exige uma regra geral que possa atrair qualquer religião e que no caso concreto foi uma em particular), também não se exige que todas as religiões também se manifestem, uma vez que o critério atrairia outra religião e fosse outro caso concreto.

terça-feira, 8 de março de 2016

Compilação de argumentos ruins defendendo algo diabólico

Em defesa do homicídio
Compilação de argumentos ruins defendendo algo diabólico
Um texto de alguém consciente

1 Da realidade

     A realidade é que no Brasil o homicídio é um problema em grandes proporções. Quase 60 mil mortos em 2014. 160 mortes violentas por dia. 28,9 mortes por 100 mil habitantes. Cerca de 6 a 8% dos homicídios são punidos.
     Outra realidade é que, mesmo quando há prisões, elas não reeducam as pessoas. Obviamente, com 6 a 8% de homicídios punidos (10% resolvidos), não é possível obter dados confiáveis, mas qualquer um sabe que as prisões não reeducam as pessoas.
     Um dos problemas das prisões é a estigmatização dos presos para a vida social. Mesmo após supostamente terem pagado por seus atos, os presos não conseguem se reajustar na sociedade, tendo dificuldade em encontrar emprego, seus antecedentes criminais, que deveriam ser sigilosos, são facilmente descobertos por empregadores.

2 Dos argumentos principais

     A inevitabilidade do homicídio: Em toda comunidade humana houve homicídio. Até mesmo na bíblia, em que Caim matou Abel. Daí decorre que o homicídio é uma condição natural do ser humano. Mesmo com o Estado proibido, ele continuará ocorrendo, e nada impedirá que ocorra.
     A punição apenas piora a situação: Mesmo que muitos moralistas considerem o homicídio um pecado, e daí queiram proibir o homicídio mesmo ele sendo algo da natureza humana, como visto quando falamos da inevitabilidade do homicídio, a verdade é que a punição do homicídio apenas agrava o problema. A pessoa que mata a outra, ao perceber que poderá ser presa pela polícia, certamente poderá pensar em matar outras pessoas, como policiais, justiceiros, testemunhas, juízes e promotores pela ameaça que essas pessoas lhe oferecem. Isso somado ao fato de que a prisão não recupera o condenado, permite concluir em nosso iluminado raciocínio que proibir o homicídio apenas aumenta o número de homicídios.
     A punição gera injustiça: Todos sabem que apenas as minorias são presas no Brasil. O sistema funciona para que muitas pessoas possam violá-lo, mas só os mais fracos sejam punidos. Por exemplo, os pobres não conseguem contratar advogados bons, o que os levam a serem presos por homicídio enquanto os ricos que matam (ou pagam para matar) contratam advogados bons ou contratam pessoas eficientes para fazerem o serviço, ou mesmo subornam as autoridades e não são punidas. Isso implica que esse sistema criminal de punição do homicídio é terrivelmente discriminatório contra as minorias. É um meio da elite se manter no poder e jogar para as prisões qualquer pessoa que questione o "status quo". Daí se conclui que o sistema criminal é injusto, apesar da elite dizer que é um sistema que defende a justiça.
     A punição é um desperdício de dinheiro. Ora, se o homicídio sempre acontecerá e o sistema criminal é falho propositadamente (como explicado em "a punição gera injustiça"), além do fato de que 10% dos homicídios são resolvidos e menos são condenados, conclui-se que existe um enorme desperdício de dinheiro do governo. Em vez do governo se preocupar em dar saúde, investir em material didático de ideologia de gênero e financiar movimentos de descriminalização da pedofilia, ele emprega o dinheiro de modo a gerar sofrimento aos homicidas, mas, como visto, não a todos os homicidas, apenas aos homicidas que se opõem às elites que dominam o sistema.
     A punição gera mazelas para os presos. Os presos não conseguem encontrar emprego. As elites têm o maior interesse de vazar informações sobre quem já foi preso para que ele seja punido pelo resto de sua vida, e não apenas na prisão. Isso é um sistema maquiavélico de controle social, em que se constrói uma estrutura preconceituosa contra os presos, que são majoritariamente minorias, em preservação do sistema oligárquico opressor. Não existe preocupação na recuperação do preso durante a prisão e nem em dar apoio a ele depois, o que apenas evidencia que o sistema funciona no sentido de tornar seus inimigos em menos humanos.

3 Dos argumentos ruins usados pelos opositores

      Os moralistas teólogos irão dizer que temos que nos preocupar com a vítima. A verdade é que ninguém se preocupa com os homicidas. A vítima já está morta. O moralista deveria ficar feliz, já que ela foi para o céu. A verdade é que a estrutura de aplicar sofrimento a quem faz o mal é uma estrutura opressora em sua raiz, uma vez que se prende ao paradigma de punir, e não avança para o tratamento e nem para a aceitação.
     Outros dirão que legalizar o homicídio fará com que o homicídio aumente. Isso é um tolo engano, como demonstrado no tópico "A punição apenas piora a situação".

4 Da falácia principialista

     Argumentam os opositores da proposta que "matar é errado", apenas baseando-se em aspectos teológicos e bíblicos (mandamento do "não matarás"). Ora, matar é errado para eles, que não se abrem para a multiculturalidade dos povos. E se houver um povo em que matar não é errado? Havia povos que sacrificavam os inimigos, outros que praticavam o canibalismo, outros que davam as crianças ao fogo. Se prender ao argumento teológico é abdicar da razão e da aceitação do diferente.
     Outra forma de se contra-argumentar à alegação de que "matar é errado" é dizer que impor o sofrimento ao outro também é errado. Tirar a liberdade de outra pessoas também é errado para os principialistas. O fato é que a morte já aconteceu, então a consequência será a imposição de privação e sofrimento a uma pessoa, ou seja, tenta-se corrigir o mal com mais mal. Daí se conclui que os principialistas são incoerentes.
     O principialismo não considera o bem social. Uma vez demonstrado que a punição gera mais homicídios, que agrava a situação do condenado, que viola a liberdade religiosa das pessoas (por causa dos argumentos teológicos que querem impor que todo pecado deve ser crime), o principialismo não preserva o bem comum. Quando dizem "bem comum", uma pessoa perspicaz e iluminada como eu deve ler "bem das elites".
     A ultravalorização da vida. A verdade é que toda a construção principialista passa por uma sacralização da vida. A verdade é que em nossos tempos contemporâneos, a vida deve ceder espaço para outros valores: a liberdade dos homicidas, a saúde e a alimentação dos dependentes financeiros dos homicidas, a eficiência do sistema que não se preocupa com algo que não consegue controlar, com progresso histórico pela superação da dialética final entre as elites capitalistas e as minorias oprimidas.

5 Conclusão

     A conclusão óbvia para tudo o descrito acima de modo genial e belo ("belo" só pode ser entendido apropriadamente após se superar a imposição cultural greco-romana de beleza, sendo o belo aquilo que eu sou e aquilo que eu considero belo - se aplica para você e para todas as pessoas sorridentes do mundo) é que eu sou uma pessoa imoral e ao menos tão inteligente quanto quem elogia pais, professores e "pets" no dia da padroeira do Brasil.


Falous, descupa aí a opressaum.

     Agora falando sério, não me apeguei a nenhum tema específico, só juntei peças de um quebra cabeça que não se encaixam.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Ódio e hipocrisia

    Está escrito no mandamento divino que não se deve matar. A esse entendimento, Jesus disse que já pecou quem matou o irmão em seu coração. Pretendo aqui fazer algumas reflexões e desabafos sobre isso.

     É triste viver em um mundo em que existe satisfação com a morte de outro ser humano, e em que se deseja o mal. Em alguma medida, podem indicar algum impulso moral por justiça (dar o mal a quem praticou o mal) ou podem ter pouco impacto, no entanto parece que em nossa sociedade (não sei dizer das outras) isso é patológico.
     Quero chamar especial atenção para o desejar mal a outra pessoa não como uma punição justa, mas como um desejo do mal pelo mal. Na política, há pessoas se alegrando com o sofrimento de Dilma (ela claramente demonstra atitudes de alguém que passou de seu limite psicológico e certamente sofre em suas circunstâncias), ou com o sofrimento de criminosos, criticando parte da "direita", ou pessoas se alegrando por Olavo de Carvalho ter xingado o Rodrigo Constantino, ou pela morte do filho de personalidades de direita, criticando parte da "esquerda". A situação se torna patológica quando o que se combate não é a ideia, mas a pessoa que a defende.
     Em casos específicos, a pessoa que defende uma ideia má ou age de modo ruim deve ser punida, mas não pelo mal em si mesmo, e sim pela relação da pessoa com o mal. Ocorre que muitas vezes a pessoa que defende uma ideia diferente passa a ser ela algo a ser destruído, de modo que qualquer de seu sofrimento seja motivo de alegria. Exemplifico: um criminoso deve ser punido, porém não é moralmente lícito que alguém viva se deleitando de qualquer de seus sofrimentos. A pena é aquela determinada pela autoridade. Alegrar-se por ele ficar traumatizado psicologicamente, ou por ser ferido, ou por ter familiares doentes, ou por morrer é um ato que viola a dignidade dele enquanto ser humano (a pena não viola por obedecer à justiça, mas esse não é o tema).
      Um ato nobre e moralmente bom é o que devem procurar fazer os cristãos: amar a quem nos odeia. Um exemplo comovente são os católicos que rezam por Richard Dawkins (http://conscienciacrista.org.br/apos-derrame-do-ateu-richard-dawkins-usuarios-do-twitter-discutem-se-devem-orar-por-ele-ou-nao/). Por quê? Por que amar a quem defende aquilo a que odiamos? Por que ele é um ser humano; e é um ser humano independente do que pensa ou de como age. Suas ações e pensamentos têm punições, mas punir não significa não amar (bem sabem os pais). O dever de caridade implica no reconhecimento do outro como alguém a quem se deseja o bem.
      Considero atitudes próprias a de hipócritas desejar um mundo bom, mas odiar ao próximo que defende coisas diferentes, seja conservadores, sejam socialistas. Se você não está disposto a lutar internamente a favor do que prega, então você é um hipócrita. Não se alcança o bem sendo mal, isso é o que precisa ser entendido. O raciocínio é simples: se não quero viver em uma sociedade com pessoas desejando o mal às outras, que eu me esforce para ser aquilo que quero que os outros sejam

Extra: Hitler

     Ninguém comenta nada por aqui, mas antecipo pensamentos de que odiar Hitler é algo bom. Na verdade, odiá-lo não é bom não. O ódio deve recair sobre duas ações e pensamentos, mas estender isso à pessoa dele é mau. Ele deve pagar por tudo o que fez, mas desejar que ele seja punido por justiça não é o mesmo que desejar que ele sofra apenas pelo prazer de vê-lo sofrer.
     Em situações extremas, como a de um caso em que você tem sua vida ameaçada, é lícito se defender e até mesmo matar ao agressor, porém não é moralmente lícito desejar a morte dele em si, apenas desejar a morte dele enquanto meio para você sobreviver, e essa diferença repousa sobre o dever moral de caridade, de amar o próximo como a si mesmo, e eu considero a forma mais segura de fazer isso é por amor ao Amor.

Tenham uma boa semana.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Homens, aborto e abandono

    Tem corrido nesta semana nas redes sociais caso de pais que abandonam filhos com microcefalia por conta desse surto que o Brasil passa. Não posso afirmar com certeza pois só agora pensei em falar sobre o assunto, mas parece que isso pode servir para se dizer "os homens são contrários ao aborto, mas quando eles estão envolvidos, querem abandonar a mulher por causa de um filho" ou algo assim. Penso que isso tem alguns pressupostos errôneos envolvidos.
     Primeiramente, assim como vários discursos feministas, parte-se de um conflito entre homens e mulheres, dois grupos com alguns interesses inconciliáveis. Parte-se de uma generalização sobre o que os homens defendem e o que as mulheres defendem. Isso é errôneo. Primeiramente, não são todas as mulheres que são favoráveis ao aborto, e nem todos os homens são contrários.
     Em segundo lugar, aponta-se para uma incoerência do grupo dos homens, que supostamente não querem o aborto mas vão abandonar a mãe caso ela tenha um filho. Essa incoerência apenas existe se se considera os homens como um grupo homogêneo. Na verdade, os conservadores sempre têm apontado que muitos homens são favoráveis ao aborto, muitas vezes são eles que induzem as mulheres a abortarem, pois na prática eles querem menos a existência de uma família (tanto em termos de matrimônio quanto em geração de filhos) do que a mulher. Quando a mulher engravida, eles sentem que pode vir responsabilidade e tentam fugir disso, e de um modo covarde e pouco viril tentam fazer a mulher abortar dizendo que não será nada, que não é o momento, que é ele quem paga as contas, que irá estragar a vida deles, que irá abandonar a mãe. Obviamente qualquer pessoa com o mínimo de senso moral considera isso um ato horrível, primeiro pelo aborto em si, segundo pela pressão à mulher, e terceiro pela covardia masculina.
     Ocorre que há também homens contrários ao aborto, e esses homens com um mínimo de dignidade também são contrários a se abandonar a mulher caso ela tenha um filho. Dentro das pessoas contrárias às mulheres, há também mulheres que fazem um ótimo serviço em dar apoio a gestantes que pensam em abortar ou que têm dificuldades em manter o filho na gestação. Esse grupo passa também por uma generalização. Feministas dizem defender a mulher, e um dos meios para isso é defender o aborto. Por um raciocínio indutivo, acabam concluindo que quem é contrário à mulher é o homem, e as mulheres que são contrárias estão se aliando aos homens. Daí, o grupo de pessoas contrárias ao aborto acaba sendo jogada para o grupo "dos homens", como se tal grupo existisse para além do mero fato de ser homem e houvesse uma ideologia homogênea.

     É realmente uma tragédia a situação em que homens pouco compromissados com valores morais tentem fazer as mulheres abortarem ou as abandonam. Dessa realidade, os conservadores não fazem como as feministas e querem defender o aborto para a mulher também se livrar da responsabilidade, mas defendem que é preciso que os homens tomem vergonha na cara e aceitem que suas ações têm responsabilidades, que as mulheres saibam escolher bons pais para seus filhos, que ambos saiam de uma vida devassa e passem a dar valor ao matrimônio e à família. É tão abominável isso? Que a igualdade entre os sexos seja não em meio a uma liberdade autodestrutiva e que fere a dignidade humana, mas se dê de modo saudável e maduro.

Passo aqui uma série de links sobre aborto, feminismo e outras coisas relacionadas.
Entrevista com Sara Winter por Evandro Sinotti - ex feminista é entrevistada em uma excelente entrevista.
Documentário Blood Money - sobre o que o aborto nos EUA está causando. Mais especificamente, tem um relato da relação com rituais satânicos.
Sobre o aborto seguro, tem uma postagem do Padre Paulo Ricardo e indico outra sobre os danos psicológicos.
Outra postagem do Padre Paulo Ricardo sobre a estratégia mundial do aborto.
Documentário O grito silencioso - não assisti ainda, mas falam que é bom.
Relato de Elba Ramalho, que abortou, se arrependeu e agora luta contra o aborto: Tem uma entrevista menor e outra maior.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Análise de "os cegos e o elefante"

(mais um texto contra o relativismo)
    Existe uma história relativamente popular a qual eu transcrevo abaixo. O site de onde copiei diz que é a história verdadeira e completa.

 Era uma vez seis cegos à beira de uma estrada. Um dia, lá do fundo de sua escuridão, eles ouviram um alvoroço e perguntaram o que era.
     Era um elefante passando e a multidão tumultuada atrás dele Os cegos não sabiam o que era um elefante e quiseram conhecê-lo.
     Então o guia parou o animal e os cegos começaram a examiná-lo:
     Apalparam, apalparam...Terminado o exame, os cegos começaram a conversar:
— Puxa! Que animal esquisito! Parece uma coluna coberta de pêlos!
— Você está doido? Coluna que nada! Elefante é um enorme abano, isto sim!
— Qual abano, colega! Você parece cego! Elefante é uma espada que quase me feriu!
— Nada de espada e nem de abano, nem de coluna. Elefante é uma corda, eu até puxei.
— De jeito nenhum! Elefante é uma enorme serpente que se enrola.
— Mas quanta invencionice! Então eu não vi bem? Elefante é uma grande montanha que se mexe.
     E lá ficaram os seis cegos, à beira da estrada, discutindo partes do elefante. O tom da discussão foi crescendo, até que começaram a brigar, com tanta eficiência quanto quem não enxerga pode brigar, cada um querendo convencer os outros que sua percepção era a correta. Bem, um não participou da briga, porque estava imaginando se podia registrar os direitos da descoberta e calculando quanto podia ganhar com aquilo.
     A certa altura, um dos cegos levou uma pancada na cabeça, a lente dos seus óculos escuros se quebrou ferindo seu olho esquerdo e, por algum desses mistérios da vida, ele recuperou a visão daquele olho. E vendo, olhou, e olhando, viu o elefante, compreendendo imediatamente  tudo.
     Dirigiu-se então aos outros para explicar que estavam errados, ele estava vendo e sabia como era o elefante. Buscou as melhores palavras que pudessem descrever o que vira, mas eles não acreditaram, e  acabaram unidos para debochar e rir dele.

     Normalmente a história contada não tem o último cego, e termina com todos os cegos se desentendendo. A história termina com uma lição "de moral" que diz que todos os cegos têm razão e nenhum dos cegos tem razão. As pessoas não devem brigar por defenderem coisas diferentes ou terem pontos de vista diferentes.
     O problema de terminar aqui a interpretação do texto é o perigo do relativismo. Por exemplo, da lição se extrair que todos os times de futebol são bons em um aspecto, e não se pode dizer qual deles é melhor. O melhor é o melhor de cada um. Ou, em um relativismo que considero mais complicado, de que todas as religiões são "iguais", ou levando a um agnosticismo em que se afirma que Deus não pode ser compreendido. Ocorre que essa não é a lição da história. Na história (considerando a versão reduzida), os cegos expressam subjetivamente uma verdade parcial, ocorre, entretanto, que existe uma realidade objetiva - o elefante existe. Se o elefante existe (e ele existe), existe uma verdade. Se existe uma verdade, então é possível se aproximar dela e, dependendo, compreendê-la totalmente ou razoavelmente bem. Por exemplo, na história completa, o cego que passou a enxergar compreendeu essa verdade. Este homem não foi compreendido pelos cegos, ele ainda assim terá a verdade, enquanto os outros terão meia verdade.
     A história termina em uma história pessimista (ou mesmo realista) de que quem tem a verdade não consegue expressá-la (assim como o sábio na caverna dos prisioneiros de Platão), sendo ela, a verdade, tratada como igual entre a mentira. Isso é o risco do relativismo: tratar igualmente a verdade, a meia verdade e a mentira total.
     Se o conhecimento existe e é desejável, deve-se buscar obtê-lo. Para se aproximar do conhecimento, o debate e a troca de informações tendo por fim a verdade é um meio saudável. Na história reduzida, os cegos, se fossem homens virtuosos buscando a verdade, poderiam discutir entre si e mesmo tatear mais o elefante para se aproximarem mais da verdade. Considerando que o elefante já tivesse ido embora, se os cegos tivessem conseguido concluir que havia tateado lugares diferentes, poderiam deduzir que o elefante reunia as características que eles haviam sentido. Isso já seria uma avanço rumo à verdade. Nesse sentido seria saudável a discussão. De forma semelhante, se os cegos fossem virtuosos buscando a verdade, o cego que passou a enxergar na história completa poderia tê-los dissuadido a aceitar a verdade.
     A lição que considero mais interessante não é a de um relativismo, mas a de que as pessoas que buscam a verdade devem ter a virtude de admitirem seus erros e de perseverarem na busca da verdade, mesmo ela parecendo muito distante. O homem sábio deve ser prudente para conseguir discernir o certo do errado sem cair em um relativismo.
     Outras coisas interessantes podem ser aprendidas: o sábio nem sempre é ouvido, a transmissão da verdade exige a virtude do emissor (pois ele deve alcançar a verdade, o que pode ser simbolizado com sua capacidade de ver) e a virtude do receptor (a verdade não se impõe, há pessoas que fogem da verdade ou não se esforçam para buscá-la).



sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Duas formas de enxergar a tradição

     Desculpem pela demora entre as postagens, vou aproveitar também para desejar um bom ano novo.

     Neste tópico, vou tratar de duas formas de se enxergar a tradição, uma de forma positiva, outra de forma negativa. A forma positiva tem uma variante bastante aceita de uma análise prudente. Só para esclarecer, a tradição é um hábito passado de geração em geração, pode ser sobre uma forma de pensar, sobre uma forma de proceder, um simples costume.
      Em uma visão, por assim dizer, mais conservadora, considera que aquilo que é tradição é um fruto de tentativa e erro. As ações individuais ou sociais passam pelo teste do tempo, que começa a filtrar aquilo que não é eficiente. É, digamos, uma seleção natural de instituições e comportamentos. A partir desse ponto, existem duas abordagens mais conservadoras. A primeira excessivamente positiva neste aspecto, considera a tradição algo positivo nela mesma, que deve ser defendida porque funcionaram por gerações, e não se pode simplesmente mudá-las, o que causaria uma violação daquilo que é natural. Uma segunda abordagem, ainda conservadora, porém mais pautado na prudência, considera que qualquer mudança na tradição deve ser vista com cuidado, principalmente naquilo cuja estrutura e funcionamento seja mais abstrato, por exemplo é mais perigoso realizar mudanças no funcionamento da família do que no uso de uma erva na cura de uma ferida por a primeira ter um funcionamento mais profundo na sociedade. Por a racionalidade humana ser limitada e por envolver complexas relações intersubjetivas, o funcionamento de algumas estruturas tradicionais têm efeitos que o ser humano não consegue compreender completamente, daí a mudança deve ocorrer com muita cautela, mais se preocupando se as mudanças vão para a direção correta do que se avança rapidamente, mas a tradição não pode ser levada a um respeito extremo.
      Vou tentar explicar uma segunda linha. Ela se baseia na existência de uma dialética histórica, ou seja, em uma visão da história baseada no conflito de classes ou instituições. Existe um progresso baseado na superação da situação anterior, seja uma classe superando outra, seja um conjunto de instituições superando outro. Nesse sentido, o progresso deve se pautar na superação do paradigma existente, normalmente pela eliminação radical de heranças anteriores, ocorre muito frequentemente em movimentos a favor de minorias, que defendem a eliminação radical de estruturas opressoras. Basicamente, essa linha defende que a tradição é algo negativo. Uma segunda linha de justificação bastante comum é a de que o estado natural do homem é algo positivo, mas as instituições humanas são negativas (uma visão ainda mais radical do que a de Rousseau, de que o homem nasce livre, mas encontra grilhões por toda parte), então essas instituições devem ser eliminadas pela liberdade humana.

     Agora vou explicar um pouco mais minha visão predominante (predominante por ser possível haver uma mistura dessas perspectivas conforme a posição, embora seja bom haver uma coerência interna), a conservadora mais prudente. Uma questão seria como realizar a análise de mudanças nas instituições, já que elas são possíveis. Existem alguns aspectos que têm peso. A primeira é uma análise por princípios. Os princípios não devem ser vistos como finalidades, mas como fundamentos que devem ser seguidos. Os princípios bons geram frutos bons sobretudo a longo prazo. Algumas pessoas desta linha consideram que os efeitos imediatos devem ser considerados com um peso especial por terem um efeito direto, eu, pessoalmente, acho que efeitos negativos de curto prazo podem ser o preço para efeitos positivos a longo prazo, e não se pode esperar não haver efeitos negativos imediatos, pois essa espera pode ser para sempre, pode ser um preço necessário. Uma segunda forma de analisar é por exemplos concretos. Normalmente essa visão concorda com a liberdade de pessoas agirem de forma diferente do que é institucionalmente protegido ou regulado; assim que a ação das pessoas fora do paradigma se mostrem melhores ou tão bons socialmente pelo teste do tempo, isso serve de argumento para que seja aceito dentro do paradigma, ou modificando o próprio paradigma.
     Creio ser preciso haver um olhar desconfiado para grandes mudanças sociais, elas podem ocorrer, mas devem ser analisadas com cuidado, por envolver estruturas muito profundas na sociedade.