sexta-feira, 19 de junho de 2015

Tudo é política... Exceto a religião

     Recordo-me do que certa vez meu professor de geografia do ensino médio disse: todos são políticos. Todos os atos são atos políticos. Em uma clara afronta à separação liberal (que ganhou força com o liberalismo, não que já não existisse antes) da separação entre o público e o privado, hoje (quase) todos os assuntos são políticos.
      Quando você escolhe o que comer, está realizando uma escolha política. Vai comer o prato vegetariano? Ou vai comer um "fast food" americano?
      Ou ainda o que vestir: Qual a marca da sua roupa? Em quais padrões ou grupos sociais ela se enquadra? Que ideia você quer passar (ou simplesmente passa) com ela? Se é mulher, é uma roupa decotada? Será que você se veste assim por culpa do patriarcado?
      Será que é melhor ir comer um churrasco (e comer carne, portanto), ou ir a um shopping (as "catedrais do consumo"), ou a um bar de elite ou de esquina?

      Estamos perdendo a diferença entre governo e sociedade, entre o que é político em seu sentido mais estrito e o que tem efeitos públicos. Nem tudo que gera efeitos para toda a sociedade deve ser alvo de discussão sobre regulação ou sobre medidas do governo. Por mais que a discussão sobre qual o tipo de roupa uma pessoa deve usar tenha efeitos públicos, se trata de uma discussão do campo privado: a pessoa escolhe a roupa que ela quer. Proibições estatais nesse sentido são totalitárias, são uma clara intromissão do estado na vida pessoal.
      O que é político tem uma relação muito próxima com o governo, com a gerência da máquina estatal. O político cuida de questões públicas, e não de questões privadas. Por mais que usar determinado tipo de roupa favoreça a tal "opressão machista", essa é uma escolha do âmbito privado, e a escolha da roupa não pode dar-se por coação (refiro-me à coação que se fundamenta em última análise na violência, e não um "olhar feio").

      Estamos chegando em um ponto em que as organizações a favor de causas "políticas" X podem defender também causas "políticas" Y. Um grupo pró vegetarianismo pode combater o consumismo de sapatos e é visto quase com naturalidade.
      O único limite real para a fuga dos propósitos do grupo é uma crítica que vem de dentro do próprio grupo. Ninguém vai dizer que há um abuso da função de um grupo que protege crianças e adolescentes quando este grupo se posiciona contra o racismo, apenas alguns membros que digam que, mesmo que seja defensável, pode começar a desviar dos propósitos do grupo.

      A única exceção de tudo isso ocorre quando se envolve a religião. O estado é laico, portanto padres e pastores não podem se posicionar sobre determinado tema. A religião é de cada um, para ser exercido de preferência dentro de portas fechadas. Uma manifestação religiosa em ambiente público pode facilmente ser vista como uma afronta à liberdade dos outros (não por todos, felizmente).
      Um grupo feminista pode facilmente defender que o aborto não seja crime, mas uma religião não pode defender que o aborto deve ser crime, pois isso viola a laicidade estatal, mesmo que o argumento seja de que o aborto é um homicídio qualificado, e nisso não envolva necessariamente nenhum critério espiritual.
     Nem mesmo precisamos ir tão longe. Não é preciso que uma religião se posicione sobre algo para haver problema. Um grupo religioso não pode se posicionar sobre várias discussões políticas. Já que o foco do grupo é o credo, que é algo individual - segundo dizem - então não pode ficar se metendo a falar sobre política sobre, por exemplo, se uma pessoa que irá ocupar determinado cargo pode se comportar de modo tendencioso contra opiniões defendidas pela religião defendida por tal grupo. Enquanto isso, um outro grupo qualquer, mesmo que tenha o foco a defesa de determinada "questão social" pode dar seu apoiou (ou sua repulsa) a qualquer outra questão social sem grande polêmica.
      Mesmo assim, é inegável que qualquer escolha, mesmo que religiosa é uma escolha "política". O ponto é que muito dos que querem que tudo seja alvo de discussão política não querem que a religião possa entrar nessa discussão. Um estado laico não é o que impede qualquer posicionamento religioso ou com fundo religioso ou por entidade religiosa (ou seja, laico não é ateu); mas sim que não segue necessariamente uma religião específica e se abre para várias religiões poderem se expressar livremente. Uma forma simples de pensar em o que é um estado religioso é pela seguinte analogia: O estado brasileiro é um estado voltado para o rock? Se propõe a apenas ouvir o rock, apenas tocar o rock e apenas incentivar o rock? Dizer que não não implica que o estado é contra o rock. Da mesma forma, dizer que um estado é laico não é dizer que ele é contra a religião.

Obs.; quanto a argumentos, acho que um estado laico não pode aceitar como argumento político um argumento puramente religioso (como "a bíblia diz X, portanto..." - note que trato especificamente de um argumento religioso, não qualquer argumento moral, p. ex.), porém religiões e entidades religiosas podem apresentar argumentos não religiosos - como, por exemplo, que a vida surge com a concepção ou que deve ser protegida desde a concepção por já estar suficientemente individualizada.

Uma boa tarde a todos.

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