sábado, 22 de fevereiro de 2014

[direitos] direito à saúde

Atenção - acho que o texto ficou bem chato de ler.


     Uma professora de direito pergunta à turma: Quem acha que o sistema de saúde deve ser somente privado?
    Um único aluno timidamente levanta à mão.

     A situação descrita acima revela não só a situação nas salas de direito, mas na própria sociedade. Talvez haja mais alunos que acreditem no sistema privado de saúde, mas que não levantaram a mão por outros motivos. O que importa é que só uma pessoa se manifestou.
      Bem, esse aluno fui eu. Vamos falar dessa questão?

     Vamos, primeiro, evitar a falácia da falsa dicotomia. Há diversas tonalidades de cinza entre o branco e o preto. A solução não é somente ou só o sistema público ou só o sistema privado.

     Soluções alternativas: é possível a coexistência dos dois sistemas, é possível certos setores serem só públicos e outros serem só privados, também é possível um sistema de vouchers (ideia interessante).

     O que defendo é que o governo cuide apenas do sistema de prevenção de doenças, como o carrinho que espirra veneno para matar o mosquito da dengue, a distribuição de vacinas etc. O setor privado deveria cuidar do atendimento médico hospitalar. Ah, o IML, que analisa os corpos das vítimas, também pode continuar público.
     Ou seja, ao defender que o setor privado cuide da saúde, defendo somente a parte do atendimento.
     Isso não é algo imediato, exige um processo de transição. Também é minha visão de médio prazo. Se ela se concretizar, poderei pensar em mais privatizações nesse setor a longo prazo. Não defendo por enquanto a privatização de tudo, acho que faltam dados sobre como deve ser a implantação e sua viabilidade.
     Obs.: Parem com a ideia de atribuir conotação negativa à palavra "privatização". Aconselho o livro "Privatize Já", do Rodrigo Constantino (ou ver os seus vídeos no youtube a respeito do tema).

     Apresentarei os seguintes pontos:
1 - O sistema público é ineficiente.
2 - O sistema público não satisfaz necessariamente as necessidades mais importantes.
3 - O sistema público distorce os preços
4 - Como deve ser a implantação.
5 - Sistema público de saúde não é incompatível com o uso de drogas.


1 - O sistema público é ineficiente.

    Para algo é lento, é em relação a outra coisa, que é rápida. Se  o sistema público é ineficiente, deve ser ineficiente em relação a outro sistema alternativo. Este sistema é o sistema privado. Ao criticarmos a lentidão dos hospitais públicos, temos como ponto de referência o mesmo atendimento no setor privado.
     Vamos aos exemplos práticos.

     i) Se você falar que um hospital tem algo como "padrão SUS de qualidade" ou é "o símbolo do sistema público de saúde", provavelmente os ouvintes evitarão tal hospital.

     ii) Consultórios privados tem menos filas, atendimento melhor e ambientes mais confortáveis (por confortáveis, inclua a aparência de limpeza).

     Agora, vamos a alguns motivos.

     a) Não há motivação salarial adequada. O estímulo para o médico atender bem no sistema público é menor do que no sistema privado. A "estabilidade" no sistema público possibilita que o médico cometa mais erros e atenda com menos eficiência.
     Vamos supor que o salário seja constante para o médico de sistema público. Então não importa quantos pacientes ele atenda, nem tanto a qualidade e nem o seu bom humor ao atender. Ele não tem estímulos para melhorar (exceto o amor à profissão. Alguns atendem bem pelo simples amor à profissão. Mas o atendimento é teoricamente melhor quando o amor se junta ao salário mais alto).
     Então, para se ter estímulos salariais, se resolve pagar o médico conforme o número de pacientes atendidos. O médico irá buscar quantidade e não qualidade.
      Então também se resolve avaliar a qualidade do atendimento. Mas como se avalia a qualidade? Com um questionário na saída do hospital? Mas o questionário só avalia logo após o atendimento, e não dias, semanas depois. (o cliente pode sair satisfeito - pelo menos, até o indivíduo descobrir que o médico esqueceu um instrumento dentro de seu corpo durante a cirurgia).
     Os questionários são boas ideias, mas não conseguem colher todos os dados. Os pacientes atendidos conversam com os amigos, fazendo críticas duras, elogios sinceros. A indicação dos amigos é mais verdadeira e abrangente do que um questionário. Essa indicação é um dos fatores que determinam o salário do médico privado, se for uma boa indicação, ele tem mais clientes e ganha mais.
      No sistema privado, a concorrência obriga os médicos a buscarem todas as características que são avaliadas pelo cliente. Se o médico não for bom, então perde clientes para outro melhor. A solução é diminuir os preços ou melhorar o atendimento. O risco de perder clientes se o atendimento for ruim e a possibilidade de ganhar mais dinheiro caso o atendimento seja bom são incentivos para melhorar a qualidade e a quantidade (sempre em equilíbrio).

    b) Questão da verba.
      O investimento que os hospitais públicos recebem depende do gerenciamento do governo. Sem investimento, não é possível melhorar a higiene, comprar equipamentos novos etc.
      Vamos trabalhar com duas hipóteses: O governo envia verbas aos melhores hospitais e o governo envia verbas aos piores. Não vou trabalhar com as hipóteses de que seja completamente aleatória a distribuição e nem a que seja conforme a relação política entre o hospital e o governo.
     Se o governo envia verba aos piores hospitais, os melhores não terão razão de serem bons. Simplesmente irão atender pior para receber mais verbas.
     Se o governo envia verba aos melhores hospitais, os piores tentariam melhorar o atendimento para receber mais verbas. Porém, o incentivo não é o mesmo do que no sistema privado. Mesmo os hospitais ruins têm "estabilidade", não importa quão ruim você atenda, você tem "estabilidade". Isso leva a medida a possivelmente apresentar efeitos inversos em alguns lugares. Alguns podem preferir trabalhar menos e receber menos - não são desempregados devido a tal "estabilidade".
     No sistema privado, os melhores médicos têm os melhores equipamentos. Os melhores médicos recebem mais dinheiro, investem o dinheiro em equipamentos melhores. Isso é um círculo virtuoso, pois melhores equipamentos possibilitam atender melhor. Os piores médicos devem se esforçar para atenderem razoavelmente bem. Se não fizerem, irão à falência. Como o médico é uma profissão valorizada, quase 100% dos médicos preferirão continuar na profissão e, portanto, melhorar o atendimento. Não existe a tal "estabilidade", se o médico não quiser trabalhar, terá um salário proporcional ao seu trabalho, sempre com o risco de perder clientes.


2 - O sistema público não satisfaz necessariamente as necessidades mais importantes.

    O que é mais importante: Todos terem um sistema de atendimento em caso de determinadas doenças ou todos receberem determinada quantidade de comida por mês?
     A resposta é "depende". Cada agente homem possui prioridades. Para uns, é mais importante comer meio pão a mais por dia do que ser atendido em caso de um câncer hipotético.
     Impor o seu desejo a todos é desvalorizar a capacidade do outro de escolher o que é melhor para si e a liberdade do outro de escolher errado. É exatamente isso que acontece quando o governo coleta tributos (dinheiro esse que poderia ser usado pelas pessoas para as necessidades que elas julgam mais importantes) para criar o sistema público de saúde. Ele pressupõe que todos os contribuintes preferem o sistema a comida, por exemplo.
      Ah, podem dizer que os ricos pagam para os pobres o sistema público. Não exatamente. São todos que pagam. E mesmo que fosse os mais ricos, o pobre pode preferir mais comida, ou roupas, ou cigarro, ou outra coisa em vez do sistema de saúde. E ainda, se os ricos pagam para os pobres, fazem isso por serem obrigados, e não por sua liberalidade. Não há virtude em se fazer o bem por coação.


3 - O sistema público distorce os preços.

     Aqui, apresente uma tese minha. Não sei se alguém já falou isso, mas o fato é difícil comentarem sobre isso.
     O sistema público aumenta os custos dos clientes por ter preços desproporcionais.
     Para isso, não é preciso do pressuposto de que o sistema privado é melhor. O pressuposto é que o sistema público é muito grande.
     O sistema público é muito grande, a maioria dos médicos está nele. Alguns atendem melhor do que outros. Os melhores acham que o sistema público não remunera suas habilidades o suficiente. Estes insatisfeitos irão abrir suas próprias clínicas. Por terem melhores habilidades, conseguirão clientes dispostos a pagarem.
      Suponha que os médicos do sistema público recebam bastante, suponhamos que seja 10 reais.
     Os médicos do sistema privado não irão quer o salário de 10 reais. Suas habilidades merecem mais, vamos supor que seja 10 reais e 50 centavos.
      A questão é que há também médicos piores no sistema público. O trabalho deles mereceria apenas 6 reais, e não os 10 reais que ganham. Eles não irão ao sistema privado por não serem habilidosos o bastante.
     A sociedade, portanto paga o médico ineficiente acima do que seu trabalho vale. E os médicos cujo trabalho é melhor não compensam esse médico ineficiente: vão para o setor privado.
     Sem o sistema público, todos os médicos tentariam atender o máximo que conseguirem na melhor qualidade possível. Alguns atenderão mais pessoas por um preço menor, outros atenderão menos pessoas por um preço maior.
      Ao privatizar o sistema público, os médicos ineficientes serão obrigados ou a cobrar menos ou a atender mais ou a melhorarem seus serviços. As duas primeiras opções têm o efeito de abaixarem os preços devido à concorrência. Com preços gerais mais baixos, os médicos que já estavam no sistema privado podem ser obrigados a abaixarem seus preços se quiserem manter seus clientes.


4 - Como deve ser a implantação.

     Primeiramente, há a possibilidade de vender os hospitais públicos. Os investidores compram esses locais e poderão usá-los como hospitais privados. Enquanto não são comprados, o governo os mantém funcionando.
      Para maximizar o efeito benéfico, o governo pode diminuir as exigências dos cursos de medicina ou possibilitar que pessoas formadas em enfermagem, por exemplo, realizem mais tipos de tratamentos sem a necessidade de médicos.
      A menor exigência nos cursos de medicina possibilitará mais faculdades. Mesmo que estas tenham um ensino inferior, isso aumentará o número de médicos. Esses médicos não conseguirão competir com os médicos formados em faculdades excelentes de medicina nos setores mais concorridos. A solução é disputar os setores menos concorridos - as pessoas com renda menor. Com o tempo e experiência, os médicos "ruins" irão melhorar e poderão competir em outros mercados. Vale dizer que uma pessoa pode achar melhor cursar rapidamente uma faculdade e começar a trabalhar logo do que ficar três anos no cursinho para um curso um pouco melhor. Os bons alunos dos cursos "piores" também terão a possibilidade de fazerem residência e se destacarem, pulando várias etapas.
     Os enfermeiros têm conhecimentos para aplicarem vários tipos de tratamentos ou prevenções. Não podem realizar processo que exigem conhecimento preciso e aplicado, mas podem suprir algumas medidas que diminuam os riscos e até que possibilitam iniciar um tratamento. Por exemplo, indicar o que fazer em caso da criança comer algo estranho. Não é preciso da opinião do médico, só de uma pessoa que conheça o assunto. Aproveitar esse conhecimento é diminuir a sobrecarga de tarefas dos médicos.
     Outra forma de melhorar o atendimento é diminuir tributações sobre equipamentos, por exemplo. Diminuir os custos possibilita que o sistema de saúde se torne mais competitivo.


5 - Sistema de saúde público não é incompatível com o uso de drogas.


     Um dos argumentos que se utiliza para combater o uso de drogas é que o sistema de saúde público irá tratar os viciados, o que corresponde a um problema para toda a população.
     Se essa lógica for verdadeira, o estado também poderia obrigar as pessoas a praticarem atividades físicas, a comerem comidas saudáveis, a não se expor ao sol das 10h às 16h etc.

      Só porque o estado oferece o sistema público de saúde, não significa que ele possa controlar a vida das pessoas. O máximo que poderia fazer é não ofertar os serviços se a pessoa fazer determinada ação.


Aceito visões contrárias, sugestões, críticas etc. nos comentários.


Tenham um bom dia!

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Veja também a  Entrevista com a médica Tatiana Villas Boas

4 comentários:

  1. Concordo com você de que o SUS é falho, mas isto não pode significar a falência deste sistema.

    Veja que ao criticá-lo, apontou a ausência de motivação salarial adequada, no entanto, este problema não se repetiria nos serviços que julgou necessário permanecer ao serviço público (IML, prevenção)? O mesmo raciocínio se aplica a questão da verba no que tange ao IML e as políticas de prevenção.

    Ao dizer que o sistema público não satisfaz necessariamente as necessidades mais importantes, concordo com você. No entanto, não vejo isto como uma forma de se criticar, mas uma constatação. Ao coletar tributos, o sistema não pressupõe que todos os contribuintes preferem o sistema a comida, mas que todos deveriam ter um acesso à saúde digno, quando fosse necessário. A ideia não é de atender desejos individuais, mas de oferecer serviços de qualidade quando for necessário.

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  2. Obrigado pelo comentário.

    Não sei se é um sistema totalmente falho, mas acredito que seria muito mais eficiente se o sistema de atendimento fosse privado.
    Da mesma forma, o IML e a prevenção poderiam ser realizados de uma forma mais eficiente pelo mesmo setor.
    Acredito que o IML é um serviço fundamental no sentido de se buscar a justiça e o cumprimento das leis. Por isso, por enquanto, penso que deve continuar sob os cuidados do estado.
    Quanto à prevenção, levo em consideração dois fatos: a maioria das vacinas são muito baratas. Prevenção ajuda a todos - erradicar uma doença contagiosa tem um efeito benéfico para todos os membros de uma sociedade.
    A mesma falta de incentivo que critiquei no caso do SUS está presente no IML e na prevenção, mas, devido à natureza desses serviços, é melhor mantê-los públicos.

    Não entendi muito bem o final do seu terceiro paragrafo. Quando se oferta "serviços de qualidade", não se deseja "atender desejos individuais"?

    Você pode defender que o estado tem o dever de garantir saúde a todos. Pela Constituição, ele tem. Acredito que ele não deveria ter esse dever. A Constituição garante mais direitos aos cidadãos do que acho apropriado.

    Obrigado pelos questionamentos. Se discorda da minha resposta, por favor, comente.

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    1. Gostei das respostas aos questionamentos. O que quis dizer no terceiro parágrafo era que o dever do Estado de se garantir a saúde não está na ideia de que com isso vá se atender desejos individuais, mas no oferecimento deste direito, pois no texto, foi insinuado que o Estado tivesse esta prerrogativa ("Impor o seu desejo a todos é desvalorizar a capacidade do outro de escolher o que é melhor para si e a liberdade do outro de escolher errado"). Ao meu ver, não é uma questão de oferecimento de desejos, mas de oferta de um serviço para se proteger o bem mais valioso: a vida.

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    2. O estado tem essa possibilidade (de oferecer diversos tipos de serviços). O que não significa que eu concorde que isso deva ser realizado.
      Entendo o seu ponto de vista. Irei refletir um pouco mais sobre ele. Mas, por enquanto, mantenho a posição de que o estado não deveria ter essa função.

      obrigado

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